Uma das histórias que mais me impressionou (sic) foi de um homem que morreu. Como se diz no Nordeste, ele estava na pedra. A família já tinha recebido atestado de óbito. A filha dele chegou em mim na igreja, me abraçou e disse: “Se o senhor disser que ele está vivo, ele viverá”. O que houve ali foi pela fé dela. Comovido, respondi: “Então, está vivo”. Quando ela voltou para casa, estavam se preparando para velar o corpo e receberam a notícia de que o homem havia voltado à vida. Os médicos tentaram justificar, mas não conseguiram entender como o coração dele voltou a bater. Foi uma ressurreição.
O relato acima foi feito em 2009 pelo líder evangélico Valdemiro Santiago de Oliveira numa de suas raras entrevistas, concedida a uma publicação evangélica chamada Eclésia.
Alto, negro, extrovertido, de fala rouca cheia de erros de português e forte sotaque mineiro, Valdemiro, de 46 anos, é o criador, líder absoluto e autoproclamado “apóstolo” da Igreja Mundial do Poder de Deus. Caçula entre as neopentecostais, a igreja foi fundada em 1998, em Sorocaba, interior de São Paulo. Mineiro de Palma, região de Juiz de Fora, Valdemiro gosta de se definir como “homem do mato” ou “um simples comedor de angu”. Na pregação diária de bispos e pastores e no boca a boca de milhares de fiéis, é reverenciado como milagreiro. Além de afirmar ressuscitar os mortos, cultiva a fama de curar de aids, câncer, cegueira, surdez, tuberculose, hanseníase, paralisia, alergias, coceiras e dores em qualquer parte do corpo e da alma. Num domingo com três cultos, Valdemiro chega a apresentar mais de 30 testemunhos de cura. ÉPOCA tentou falar com Valdemiro durante dois meses. As solicitações foram feitas por meio de assessores e bispos e diretamente a ele, na saída de cultos. Em duas ocasiões, ele prometeu dar entrevista, mas nunca agendou.
Um policial exibe fuzis apreendidos com pastores da Igreja Mundial em Mato Grosso do Sul. O próprio Valdemiro já foi preso com armas ilegais
Dissidência da Igreja Universal do Reino de Deus, a Mundial é a menos organizada das evangélicas. Seus templos têm instalações precárias. A pregação é classificada por alguns como “primitiva”. Há gritos, choros e performances espalhafatosas. Até suas publicações são visivelmente mais pobres que as das concorrentes. Apesar de fazer quase tudo no improviso, a Mundial já é considerada o maior fenômeno religioso do Brasil desde a criação da Igreja Universal, em 1977, sob a liderança do bispo Edir Macedo. Mais que isso, a Mundial começa a se firmar como ameaça ao império que a Universal ergueu no campo das neopentecostais.
Carismático, intuitivo, meio desafiador, meio fanfarrão, Valdemiro comanda uma estrutura que, de acordo com números da igreja, reúne 2.350 templos, cerca de 4.500 pastores e tem sedes em mais 12 países. Só em aluguéis de imóveis para cultos a Mundial gasta R$ 12 milhões por mês, segundo estima o diretor de compras da igreja, Mateus Oliveira, sobrinho de Valdemiro. Em número de templos, a Mundial superou duas de suas três concorrentes neopentecostais: a Internacional da Graça, do missionário R.R. Soares, e a Renascer, do casal Estevam e Sônia Hernandes. Nos últimos dois anos, a Mundial praticamente multiplicou por dez seu tamanho (em 2008, eram 250 templos). Mantido o atual ritmo de crescimento, ela ultrapassaria a Universal até 2012. A igreja de Edir Macedo afirma ter 5.200 templos e 10 mil pastores.
Uma característica nova na expansão da Mundial está naquilo que o sociólogo Ricardo Mariano, estudioso de religião na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, chama de “pescar no próprio aquário evangélico”. Estudos sugerem que a maior parte dos seguidores da Mundial veio de outras neopentecostais, principalmente da Universal. Poucos eram do meio católico, tradicional fornecedor de fiéis para denominações evangélicas. “Calculo que mais de 50% dos membros da Mundial saíram da Universal, uns 30% da Internacional da Graça e o resto das demais evangélicas ou outras religiões”, diz Paulo Romeiro, professor de teologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie e autor de um livro sobre a igreja.
Na cúpula da Mundial, a presença de ex-membros da Universal é expressiva. Estima-se que 90% dos bispos e até 80% dos pastores tenham sido formados por Edir Macedo. O próprio Valdemiro tem origem na Universal, onde atuou por 18 anos. O apetite com que a Mundial avança sobre a Universal aparece até na distribuição geográfica dos templos. Valdemiro tem predileção por instalar igrejas em imóveis que já foram ocupados pela Universal.
Parte do encanto de Valdemiro está na imagem messiânica que ele construiu em torno de si, contando histórias mirabolantes. A mais espetacular está no livro O grande livramento: ele descreve um naufrágio que sofreu em Moçambique em 1996, quando ainda era da Universal. Valdemiro diz que ele e três conhecidos foram vítimas de uma sabotagem, que fez a embarcação afundar a 20 quilômetros da costa. A partir daí, a história ganha ares cinematográficos.
Valdemiro na época pesava 153 quilos (anos depois, ele faria uma cirurgia de redução de estômago). Ele diz que deu os únicos três coletes aos colegas e começou a nadar a esmo. Diz ter nadado oito horas “contra forte correnteza”, “ondas gigantes” e cercado por “tubarões-brancos assassinos” e “barracudas agressivas”. Na travessia, prossegue sua narrativa, um pedaço de sua perna foi arrancado e seus olhos foram queimados por “águas-vivas gigantes”. Quando finalmente chegou à praia, diz ele, dormiu na areia e acordou nos braços de dois estranhos, “africanos seminus”. “Tive a clareza de que os anjos do Senhor haviam me visitado e me dado o livramento”, diz. Dos três companheiros, dois morreram e um foi resgatado. Na época, jornais noticiaram o naufrágio, mas muita gente na igreja duvidou do relato. Um bispo foi à África fazer uma sindicância, mas isso não sanou as dúvidas.
Valdemiro também conta outros três causos de “livramento”. Diz que, numa ocasião, caiu do 8º andar de uma obra, mas nada sofreu. Afirma também que, passeando de carro “na África”, uma bomba de um campo minado explodiu “arremessando nosso carro uns 3 metros para o alto”. Diz ainda que sofreu uma tentativa de assassinato, mas os “matadores profissionais” erraram os cinco tiros. “Assustados, jogaram o rifle para dentro do carro e fugiram”, afirma.
Além dos “livramentos”, a Mundial ostenta ainda outras três distinções em relação às concorrentes. A principal é a ênfase na cura. Diferentemente da Universal, que cresceu preconizando o exorcismo, ou da Renascer, que concentra o foco na prosperidade, a Mundial promete soluções divinas para doenças terrenas. O discurso não é novo. Nos anos 50, milagres de cura eram o mote da Igreja do Evangelho Quadrangular e da igreja O Brasil para Cristo, de Manoel de Mello. Valdemiro remasterizou o tema. Para dar credibilidade ao discurso, às vezes recorre ao médico Wandemberg Barbosa, que sobe ao altar para dizer que a medicina não explica certos fenômenos. “Há casos que só podem ser milagres”, diz Barbosa. “Tomo cuidado com o que falo porque existe a fiscalização do CRM (Conselho Regional de Medicina), mas Valdemiro não provoca a descrença na medicina. Ele nunca manda ninguém interromper o tratamento.”
Outra característica que distingue a Mundial é a sacralização do suor. A cada culto, Valdemiro passa quase três horas no altar. Ali, ele grita, canta, ri, chora, pula, se ajoelha e sua. Sobretudo sua. Quando a reunião termina, seu suor é disputado pelos fiéis. Mais de 200 chegam a cercá-lo. Tremendo, chorando, eles usam toalhinhas fornecidas pela igreja para coletar alguma umidade. Depois, esfregam o pano no próprio corpo, em fotos ou documentos. “A valorização do suor, que ocorre com vários líderes da Mundial, é uma novidade completa entre os protestantes”, diz o sociólogo e teólogo Ricardo Bitun, da Universidade Mackenzie. “Valdemiro é corajoso ao permitir que o público toque em seu corpo. Nenhum outro líder evangélico faz isso”, afirma o sociólogo Antônio Flávio Pierucci, da Universidade de São Paulo (USP).
O terceiro elemento distintivo da Mundial é a composição de uma cúpula majoritariamente negra. Os bispos Josivaldo Batista, o segundo na hierarquia, e Roberto Damásio, o terceiro, também são negros. Valdemiro fala com orgulho sobre a presença de negros na direção da igreja. E afirma já ter sido discriminado por sua cor. Eis o que diz o jornalista Ronaldo Didini, ex-homem de confiança de Edir Macedo que hoje trabalha como consultor de mídia para Valdemiro: “Uma vez, numa reunião de lideranças da Universal, Valdemiro foi indicado para liderar a igreja no Paraná. Macedo foi contra, dizendo que a sociedade paranaense era elitizada e que não mandaria um negro para lá. Quem defendeu o Valdemiro foi o Honorilton (Gonçalves), hoje presidente da Record. Mas não adiantou”. Por meio de sua assessoria, a Universal afirmou que tem vários pastores e bispos negros e que a acusação de discriminação contra Valdemiro é improcedente.
A Mundial não vive só de inovação. Noutros aspectos, aproveita o know-how dos concorrentes, como a prática de distribuir bens em nome de terceiros para esconder o enriquecimento das lideranças. “A Mundial cresceu muito. Então há coisas que o apóstolo coloca no nome de outros. Eu já tive veículos da igreja em meu nome”, diz Jorge Lisboa, obreiro e assessor da Mundial, presença frequente no altar ao lado de Valdemiro. “O primeiro carro que o apóstolo comprou pela igreja colocou no meu nome. Muita coisa é assim. Sabe por que o R.R. Soares está estacionado? Porque dedicou tudo à família. O dirigente tem de confiar nos outros. Se comprar dez emissoras de rádio, tem de colocar em nome de pessoas diferentes.” O missionário R.R. Soares não respondeu aos pedidos de entrevista de ÉPOCA.
A prática descrita por Lisboa é confirmada pelo advogado Fausto Bossolo, membro da Mundial e assessor do vereador José Olímpio (PP), representante da igreja na Câmara Municipal de São Paulo. “Como é que você vai declarar isso no Imposto de Renda? A Igreja Evangélica tem um crescimento absurdo e a demanda é muito grande”, diz ele. “Então é complicado colocar (tudo) no nome de uma pessoa só. Você tem uma casa e daqui a um ano tem 20. E aí? Como fica?”
Ainda que a cúpula da Mundial mantenha segredo sobre a movimentação financeira da igreja, todos concordam que o gasto mais relevante é com mídia. Um membro da cúpula afirmou que o desembolso total nessa rubrica está em torno de R$ 13 milhões por mês. “No Canal 21, o apóstolo deve estar pagando uns R$ 7 milhões, daí para mais. Na Rede TV! foi renovado por R$ 1,9 milhão. E na CNT uns R$ 800 mil”, diz o assessor Jorge Lisboa sobre os três principais contratos. Para filmar eventos externos, a Mundial contratou a produtora de TV Casablanca, a maior do setor no Brasil.A nova ambição de Valdemiro é política. Seguindo a tendência de outras igrejas, ele quer criar sua própria bancada em Brasília e eleger um representante seu em cada Assembleia Legislativa do país. “A estratégia do apóstolo é lançar só um federal e um estadual por Estado. É para não ter competição interna”, diz Irio Rosa, escalado para ser candidato a deputado estadual no Paraná pelo nanico PSC (Partido Social Cristão). A legenda, cujos maiores expoentes são o senador Mão Santa (PI) e o ex-governador do Distrito Federal Joaquim Roriz, deverá lançar a maioria dos candidatos da Mundial. Rosa, exibido constantemente na TV da Mundial, admite que mal conhece o Paraná.“Eu queria sair candidato por Brasília, mas o apóstolo não deixou. Então, faz um ano que estou morando em Curitiba”, diz.
Um dos colaboradores mais importantes de Valdemiro fará dobradinha com Rosa no Paraná. É o executivo Ricardo Arruda Nunes, ex-presidente do desativado Banco de Crédito Metropolitano, conhecido como o banco da Igreja Universal. Nunes diz ser hoje responsável pela “estratégia financeira” da Mundial. Ele já foi investigado pela Polícia Federal e pela Procuradoria da República por suas supostas relações com empresas-fantasmas que teriam sido criadas pela Universal para lavar dinheiro. Agora, prestador de serviços para a Mundial, frequenta os cultos de Valdemiro todo domingo.
Em janeiro, Valdemiro Santiago quase recebeu o presidente Luiz Inácio Lula da Silva em seu altar. A ocasião era um culto no Paço Municipal de São Bernardo do Campo, com público estimado em 50 mil pessoas. Lula chegou a confirmar presença, mas não apareceu, porque teve uma crise de hipertensão. Para representá-lo, compareceram dois petistas: o prefeito Luiz Marinho e o senador Aloizio Mercadante. “Eu não conhecia Valdemiro”, disse Mercadante. “É mesmo impressionante. Ele prega de forma muito direta, autêntica e popular. Lembra as manifestações que a gente fazia aqui neste mesmo lugar com os trabalhadores, um movimento forte, espontâneo e que incomoda as elites.” Mercadante prometeu articular um encontro de Valdemiro com Lula. Até a semana passada, nenhuma reunião tinha sido agendada.
Valdemiro procura cultivar contatos com políticos de diversas tendências. Mantém boas relações com o tucano Marconi Perillo, senador por Goiás, e com Ivo Cassol (PP), governador de Rondônia. “Imagine uma pessoa íntegra, boa, verdadeira. É ele, Valdemiro. Ele faz coisas que só Deus pode fazer”, diz Cassol. Ele costuma recebê-lo em sua fazenda, em Rondônia, para pescar. Entre os políticos de destaque, o prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab (DEM), é o único com quem Valdemiro tem relacionamento dúbio. Em 2008, Valdemiro pediu votos para Kassab. No ano passado, quando a sede da Mundial no Brás, centro de São Paulo, foi lacrada por falta de segurança e excesso de barulho, Kassab passou a ser tratado como inimigo.
A sede do Brás é um galpão enorme e antigo, que funcionava como fábrica da família Matarazzo. Ocupa uma área de 43.000 metros quadrados e foi comprado pela igreja por R$ 60 milhões em 60 parcelas. O embargo ocorreu porque o imóvel tinha fiação exposta, piso e teto comprometidos e não contava com saídas de emergência, além de produzir muito barulho. Enquanto providenciava reformas, Valdemiro dizia que o fechamento era uma “perseguição dos poderosos à obra de Deus”. Várias vezes ameaçou retaliar Kassab nas urnas. A sede, que ficou 53 dias lacrada, é a principal fonte de renda da Mundial. “O fechamento da nossa igreja provocou um prejuízo de milhões e milhões de reais”, disse Valdemiro num culto em fevereiro, enquanto pedia mais ofertas aos seguidores.
De todos os assuntos relacionados à vida de Valdemiro, um dos mais polêmicos e misteriosos é sua saída da Universal. Valdemiro é o único dissidente de Edir Macedo que prosperou criando sua própria igreja. Depois de ocupar posições de destaque em São Paulo, Paraíba, Pernambuco e em Moçambique, Valdemiro rompeu com a Universal em 1997. Sua importância pode ser medida pelas participações societárias que acumulou. No último ano de Universal, tinha em seu nome duas TVs e três rádios FM da igreja. Há várias versões para a ruptura. Alguns dizem que Valdemiro foi expulso por desviar dinheiro da Universal. Outros dizem que ele discordou de Edir Macedo na nomeação de um bispo. Há quem diga que ele caiu em desgraça porque brigou com autoridades de Moçambique e atrapalhou a expansão da igreja por lá. Sua saída não foi amigável. “Sabe o que o Macedo fez com ele? Deu R$ 50 mil e um Gol velho. Jogou na mesa. Foi assim que o Macedo fez, ó: ‘Se você ficar, vou te dar uma liderança forte, um Audi, tudo. Se sair, leva R$ 50 mil e um Gol velho’”, afirma Didini, que deixou a Universal na mesma época. “Ganhei R$ 100 mil quando saí. O cara (Valdemiro) foi um líder, trabalhou 18 anos lá, deu a vida pela igreja e só levou R$ 50 mil.”
Parte importante do sucesso da Mundial é resultado da crise da Igreja Universal. Lideranças evangélicas dizem que a Universal começou a enfrentar problemas quando Edir Macedo passou a dedicar a maior parte de sua atenção à TV Record. “Ele deixou de ser igrejeiro, virou empresário e foi morar nos Estados Unidos, longe dos fiéis”, afirma o ex-bispo Marcelo Pires, que atuou na Universal e hoje move processos judiciais contra a igreja. “O seguidor da Universal nem vê mais o Edir pregando. Como não sente o carinho de seu líder, procura outras igrejas.” Há também o desgaste provocado pelas denúncias recentes de lavagem de dinheiro e enriquecimento ilícito contra líderes da Universal.
Desde a criação da Mundial, Edir Macedo nunca manifestou nenhum tipo de temor sobre a concorrente. Dias atrás, ele publicou um post em seu blog em que cita pela primeira vez a Mundial. Edir Macedo reproduziu a carta de uma fiel que teria passado pela igreja de Valdemiro. Ela diz que na Mundial viu sua vida espiritual “caindo a cada dia”. Os parceiros de Valdemiro comemoraram. Para eles, Edir Macedo passou um atestado de preocupação
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