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quarta-feira, 28 de março de 2012

Aborto - Legislando sobre o direito de matar

ABORTO - Jornalista da Folha, que é cadeirante, se espanta com fala eugenista de procurador. Ou: Reacionário é legislar sobre a morte; progressista é a vida

Jairo Marques, jornalista da Folha, é cadeirante. Ele escreve hoje um artigo no jornal sobre proposta encaminhada ao Senado por “juristas”, de que um procurador da República foi o relator. É aquele texto que defende, abertamente, o aborto caso se constate a deficiência do feto. O procurador em questão, cujo nome não é citado no artigo, é Luiz Carlos dos Santos Gonçalves. Segundo ele, caso se verifique que a criança por nascer é portadora de “graves e incuráveis anomalias que inviabilizem sua vida independente”, o aborto tem de ser permitido. Ocorre que eu, segundo os “progressistas” e “modernos”, tenho um grave defeito: sou católico! Quando se é católico, você necessariamente tem de ser a favor do aborto (!) ou se calar a respeito para que não o acusem de estar tentando impor a sua religião aos outros. Se você é católico, não tem nem mesmo autonomia para contestar uma fala boçal e perigosa, como a desse procurador.

Jairo, um cadeirante, se espanta com a afirmação, como me espantei. É bem verdade que ele parece flertar com o aborto, mas não estou certo. Escreve: “Dar o devido poder à mulher sobre seu corpo me parece ir ao encontro de uma sociedade moderna e justa, assim como poupá-la de gerar uma cria com chance nula de sobrevivência.” Não sei exatamente o que pretende dizer com isso. No Brasil e mundo afora, a expressão “poder da mulher sobre seu corpo” (quem é tão cretino a ponto de negá-lo?) é só uma forma eufemística e perifrástica para falar “aborto”.

Os portadores de deficiências físicas — ou de “necessidades especiais”, como se diz no universo politicamente correto — do Brasil e do mundo inteiro fiquem atentos. Uma das formas de ser do suposto “progressismo”, hoje em dia, REDUZ, NA PRÁTICA, A HUMANIDADE DOS DEFICIENTES. No tal artigo em que aquela dupla defendia o infanticídio, a Síndrome de Down, por exemplo, era tratada como motivo mais do que suficiente para abortar. Muito bem: não sou mulher, não sou cadeirante, não sou “minoria”… Eu pertenço àquela que já foi uma saudável maioria: a que RECONHECIA o direito que qualquer ser humano tem à vida; a que CONSIDERAVA que a vida do homem era inviolável e que preservar esse princípio nos PROTEGIA das eventuais e mutáveis vontades do poder.

Hoje em dia, não obstante, gente como Vladimir Safatle, também articulista da Folha, entende que a vida humana é histórica e socialmente determinada. Se, num determinado momento, a história e a sociedade, então, convergirem para a eliminação dos deficientes, por que não? Leiam o artigo de Marques. Volto para encerrar.

*
Estava com o pé do ouvido no rádio, quando o locutor começou a entrevistar um defensor de mudanças nas regras de não punição ao aborto, hoje restritas a salvar a vida da gestante ou para preservar a honra da mulher após um estupro.

Em um dos pontos da fala, encafifei: dar direito a retirar o feto nos casos em que houver comprovação de que ele padece de “graves e incuráveis anomalias que inviabilizem sua vida independente”.

O procurador da República que defendia a proposta foi categórico ao dizer que não há subjetividade possível no conceito e que ninguém irá morrer a troco de nada (uia!).

Catei meu bloquinho de repórter e fui atrás de doutores ninjas sobre o tema. Se for pela objetividade, minha turma “mal-acabada” está na roça sem jegue e sem enxada.

O conceito de vida independente na medicina é “a realização de atividades -motoras ou cognitivas- sem a necessidade de outras pessoas ou de instrumentos de apoio, desde que de forma segura”.

De maneira empírica, digo que a perspectiva do que seja “independência” é fatalmente contaminada e imposta por experiências alheias àquelas de quem aprende a se virar, a criar mecanismos de compensação de não conseguir desenvolver uma tarefa física, sensorial ou intelectual.

Digo isso a bordo de uma cadeira de rodas, veículo onde já me despejam fracassos e impossibilidades diversas que, para mim, são risíveis. O mesmo atrevo a estender às pessoas com síndrome de Down, paralisadas cerebrais, vítimas de doenças raras, prejudicados dos cromossomos e demais “anômalos”.

Qual a expectativa de autonomia para gente que nasce só o “cotoco”? Há más-formações de nascença que fazem bebês darem as caras ao mundo sem as pernocas e sem os bracinhos.

Ligeiramente, a tendência é achar que ficarão a vida toda em caixas de sapato recebendo papinha da mamãe e bilu, bilu do papai. Mas nada mais espetacular do que o poder da natureza, que cria atalhos no sentido lógico de viver.

Há “cotocos” que, com o apoio da tecnologia, da reabilitação, do estímulo familiar, se transformam em mestres, em procuradores, em jornalistas, em plenos cidadãos.

Mara Gabrilli, primeira deputada federal tetraplégica do Brasil, tem uma frase “maraviwonderful”: “Quanto mais tecnologia se oferece para a pessoa com deficiência, menos deficiências ela tem”.

A medicina genética galopa em um puro-sangue na descoberta de genes que vão determinar até quantas vezes na vida a gente vai ter dor de cabeça, se o indivíduo vai gostar de coelhinho da Páscoa.

Penso que os avanços são salvaguardas para preparar o porvir, para buscar soluções antecipadas. Não servem para determinar quem deve viver, quem deve morrer.

Dar o devido poder à mulher sobre seu corpo me parece ir ao encontro de uma sociedade moderna e justa, assim como poupá-la de gerar uma cria com chance nula de sobrevivência.

Mas assusta o bumbo do discurso pró-aborto para caminhos em que só os perfeitinhos serão aceitos. Ter um bebê fora da curva da normalidade é de chorar pelado no asfalto, mas diversidade humana tem de ser defendida além da cor da pele ou do tamanho do pé.

Voltei
É evidente que concordo com quase no tudo o que vai no artigo de Marques, exceção feita ao flerte que, entendo, ele ainda faz com o aborto. Não sei se entendi direito. Não especulo sobre motivações subjetivas, mas há uma possibilidade de que, afinal, ele não queira ser reconhecido como um “reacionário”, que não reconhece o “direito da mulher ao corpo”. Pensar na contramão do “consenso progressista” é um fardo enorme. Nem todo mundo topa a parada.

O que sei, Marques, por um império da lógica, é que, se estabelecermos em que condições um feto está ou não apto a continuar vivo, um marco estará sendo criado. Como todo marco, ele é móvel. Como marco móvel, está sujeito às mudanças propugnadas por grupos de pressão. Pronto! A vida passou a ser um valor sob especulação!

A única coisa, Marques, que nos protegebrancos, pretos, vermelhos, mulheres, homens, bichas, cadeirantes é a vida como cláusula pétrea.

Progressista é a vida! O resto é legislar sobre o direito de matar.

Fonte: Blog do Reinaldo Azevedo

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