Monges ultraconservadores de Nova Friburgo consagram bispos à revelia do Vaticano, criticam o Papa Francisco e rezam missas em latim
Se algum dia um mensageiro chegasse ao Mosteiro da Santa
Cruz, na área rural de Nova Friburgo, Região Serrana fluminense, com a
notícia de que o calendário cristão retrocedeu para os anos 1950, boa
parte das angústias dos nove monges que ali vivem encontraria alívio.
Foi no início da década seguinte, entre 1962 e 1965, que, para eles, a
Igreja Católica começou a desandar. O Concílio Vaticano II, promovido
por Roma, determinou, nesse período, uma série de modernizações, como a
abolição da missa tridentina — feita em latim e com cantos gregorianos —
e do uso de véu pelas mulheres. Nenhuma dessas reformas é seguida pelo
mosteiro, hoje o único beneditino tradicionalista do Brasil.
Mosteiro da Santa Cruz, em Nova Friburgo, é o único beneditino tradicionalista do Brasil.
- Guilherme Leporace / Agência O Globo
Lá, a missa é toda conduzida na língua morta, o padre
celebra de costas para os fiéis, a escolha de outras religiões é vista
como pecado e as mulheres são aconselhadas a não trabalhar fora de casa.
São as mesmas práticas adotadas desde o Concílio de Trento, no século
XVI. E isso não causaria qualquer problema com o Vaticano, que tolera
essas posturas, não fosse a recente ordenação de um padre e a sagração
de um bispo, lá no mosteiro, sem o consentimento da Santa Sé. A isso
somam-se severas críticas feitas ao Papa Francisco, considerado
progressista demais pelos monges. Estes planejam, ainda, novas
ordenações e sagrações à revelia de Roma. - *O Papa Francisco recentemente manifestou opinião favorável aos gays e todos sabemos que as práticas gays são abominações. Os valores de Deus são eternos e não estão sujeitos as modernidades do mundo.
Alguns consideram que a Igreja deve se modernizar, adaptar ritos de dois mil anos atrás aos costumes atuais - dois mil anos, ou dois milhões de anos, nada são comparados à eternidade.
E a Igreja Católica Apostólica Romana, fundada por Nosso Senhor Jesus Cristo, cuida primordialmente da salvação das almas e a salvação é para toda a eternidade.
Um dos grandes expoentes da corrente tradicionalista da Igreja, o bispo inglês Richard Williamson, veio ao Brasil, em meados do mês passado, para consagrar um bispo no mosteiro de Friburgo, o francês Jean-Michel Faure. No fim de março, Faure, por sua vez, ordenou um padre, André Zelaya de León. Ambas as cerimônias foram consideradas clandestinas, porque ocorreram sem autorização do Vaticano, e ganharam destaque em jornais internacionais, como o italiano “La Stampa”, o alemão “Frankfurter Allgemeine” e o inglês “Guardian”. Pela rebeldia, de acordo com a lei canônica, Williamson, Faure e León estão automaticamente excomungados. — A excomunhão é uma pena espiritual para quem cometeu uma falta religiosa. Como acreditamos que não foi cometida falta alguma aqui, eles não se sentem excomungados — afirma o irmão Miguel, pernambucano de 24 anos, um dos monges de Friburgo.
Ele explica que não existe um cisma apenas entre os sacerdotes progressistas, que são a esmagadora maioria, e os tradicionalistas. Há uma cisão também entre os próprios conservadores, muitos dos quais consideraram desnecessárias as recentes cerimônias de ordenação e sagração.
Missas são rezadas em latim no mosteiro Santa Cruz - Guilherme Leporace / Agência O Globo
Segundo o monge superior, Dom Tomás de Aquino, há cerca de 500 “pessoas que pensam” como eles no Brasil. A maioria do rebanho, porém, está na França, país que mais faz doações para o Mosteiro da Santa Cruz. Nasceu em solo francês, por exemplo, uma das instituições católicas consideradas mais ultraconservadoras, a Fraternidade Sacerdotal São Pio X. Fundada pelo arcebispo francês Marcel Lefebvre em 1970, a entidade foi uma resposta ao Concílio Vaticano II, que havia terminado cinco anos antes. No entanto, ela foi, aos poucos, adquirindo um espírito conciliador com a Santa Sé, até que, em 2012, chegou a expulsar de seu quadro o bispo Williamson, um dos mais resistentes a qualquer alteração nos dogmas. Desde então, a relação entre a fraternidade e o mosteiro de Friburgo, que sempre foi estreita, ficou estremecida. — Nós nos posicionamos ao lado dele e, por isso, criamos um atrito com a fraternidade. Depois disso, o próprio bispo Williamson, que tem 75 anos, ficou com medo de morrer e não ter nenhum bispo que dê continuidade ao pensamento dele e do arcebispo Lefebvre, que já morreu. Só um bispo pode sagrar outro.
-* a sucessão de um bispo é a prática da sucessão apostólica, a transmissão dos poderes recebidos pelos Apóstolos do próprio Jesus Cristo e que só pode ser formalizada durante a sagração que tem que ser realizada por um bispo.
O próprio Papa é o Bispo de Roma.
E o Vaticano não mandaria nenhum bispo para nós, porque não nos aprova. Se Williamson morresse, estaríamos perdidos. Por isso, ele resolveu sagrar Faure — conta irmão Miguel, enquanto serve uma bandeja com cafezinho na antessala da clausura dos monges.
Faure está longe de ser considerado da nova geração dos tradicionalistas. Ele tem 73 anos, quase a mesma idade de Williamson. Mas a escolha explica-se: a confiança na retidão dele pesou mais do que o risco da idade avançada. — O bispo Williamson preferiu sagrar alguém que ele tem certeza de que, meses depois, não estará mudando de lado. Mas, a partir de agora, ele e Faure pretendem sagrar outros bispos, para dar continuidade — revela irmão Miguel. A equipe do “Globo a Mais” foi recebida no mosteiro, que fica na região de Riograndina, a cerca de 40 minutos do centro de Nova Friburgo, numa segunda-feira, às 11h. Àquela hora, começaria uma missa que daria indulgência plena a quem a assistisse, desde que estivesse seguindo todos os preceitos católicos tradicionalistas, informou um jovem com terço na mão e voz que mal saía da boca. Logo saberíamos que o motivo da “indulgência plena” era o fato de a missa ser a primeira celebrada pelo padre recém ordenado no lugar, dom André Zelaya de León. Essa primeira celebração seria em adoração à Virgem Maria. A pedido do bispo Williamson, o sacerdote ainda rezaria duas missas, nos dois dias seguintes: uma pelo Espírito Santo, outra pelas almas dos defuntos.
Para assistir à missa, a repórter teve de usar um véu branco rendado. É como a tradição manda por ali: as solteiras com véu branco, e as casadas com véus de outras cores. Sem o adereço, com saias curtas ou calça comprida, não é permitido. Um aviso na porta do templo traz essas orientações, referindo-se a uma decisão da “Sagrada Congregação do Concílio contra a imoralidade das modas femininas”, datada de 12 de janeiro de 1930.
A igreja é pequena: 13 bancos parcamente ocupados por não mais que dez fiéis, além de integrantes do mosteiro e meia dúzia de freiras. A estrutura também é modesta, com piso de encerar, paredes brancas, vigas e janelas de madeira e entradas no teto para a luz do sol. Do início ao fim, a cerimônia foi conduzida por cantos gregorianos, o sacerdote de costas para todos — ele virou-se seis breves vezes, suficientes para emitir uma frase, ininteligível para quem não é versado em latim. O ritual levou uma hora e dez — a missa de domingo costuma se estender mais, por até três horas. O silêncio sepulcral que às vezes se instalava era quebrado apenas pelo barulho dos cliques da câmera fotográfica.
Missa Tridentina II do Papa Bento XVI
Após a missa, em entrevista, o superior do mosteiro, dom Tomás de Aquino, afirmou que o Papa Francisco está contribuindo para destruir os pilares básicos do catolicismo, criticou até mesmo Bento XVI — visto por estudiosos da Igreja como adepto de uma doutrina mais tradicional — e expressou a certeza de que as decisões tomadas no Concílio Vaticano II serão um dia revistas. — Não sei quando isso vai acontecer, mas é certo que o (Concílio) Vaticano II será anulado. Eu nem imaginava que duraria tanto. Às vezes, a Igreja comete erros e depois revê isso. Joana D’Arc, por exemplo, foi condenada e, mais tarde, tornada santa — compara o monge superior. — Antes de virar Papa, o então cardeal Bento XVI chegou a reconhecer publicamente que o Concílio Vaticano II foi um Anti-Syllabus. O Syllabus foi uma lista de erros da vida moderna, documento feito pelo Papa Pio IX. E o Vaticano II reabilitou todos esses erros! Mas nem Bento XVI pode ser considerado tradicional. Ele tinha uma aparência de tradicional, mas sua doutrina não era. Todos os papas que vieram depois da década de 1960 são modernistas, progressistas demais. O Papa Francisco é o mais escandaloso deles.
Nascido no Rio, dom Tomás de Aquino estudou no colégio São Bento e na PUC-Rio, ambas instituições particulares católicas da Zona Sul carioca. Aos 20 anos, em 1974, abandonou o curso de Direito para viver em um mosteiro tradicionalista da França, onde morou por 12 anos. Antes mesmo de mudar de país, seu pai havia comprado um terreno em Nova Friburgo, e, em 1986, resolveu doá-lo ao mosteiro beneditino que o filho integrava, para os monges criarem uma unidade também no Brasil. Dom Tomás voltou para cá naquele mesmo ano e, em 1987, a instituição foi fundada, abrigando seis monges. Destes, apenas dom Tomás e dom Plácido continuam por lá.
Entre os atuais nove monges, há um da França, um da Guatemala, um de Pernambuco, três da Bahia e três do Rio. Está para chegar, em breve, mais um integrante. O sustento do mosteiro vem, em grande parte, das doações, que podem ser feitas em vários bancos do Brasil e de outros países, como França, Suíça e Alemanha. A instituição também recebe doações via internet, por PayPal. — Não somos antigos no que diz respeito à tecnologia. Gostamos muito dessas maquininhas. Só somos antigos em relação à doutrina — diz Dom Tomás, sempre que um visitante estranha que eles usem essas modernas formas de pagamento.
Cedo, ainda universitário do curso de Direito, ele esboçava esse apego à tradição. O monge lembra a orientação que um professor lhe deu uma vez, de que um bom advogado deve mudar a lei inovando. A evocação de mudanças e inovações não agradou o então estudante, que logo retrucou: “mas inovar apenas por obrigação não é bom. Vai que se inova para o lado errado?”. — Não demorei a perceber que a profissão de advogado não seria para mim. Estava fazendo a faculdade apenas para não ficar parado, enquanto não encontrava um mosteiro tradicional que me agradasse — conta ele, com a voz doce de quem passou quatro décadas vivendo uma rotina de “silêncio, trabalho e estudo”, das 4h às 20h30m.
As opiniões de Dom Tomás de Aquino — que ele chama de “certezas” — fariam arrepiar qualquer noviço que tenha aulas nos seminários mais modernos. Ao defender a histórica posição contrarrevolucionária da Igreja Católica, ele cita, por exemplo, que o Papa Pio XI repudiou a Revolução Francesa. E lhe dá razão: — A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão foi, na verdade, a negação dos direitos de Deus — dispara, no mesmo tom que usaria para comentar se vai chover ou não.
E ai de quem diga, perto de um dos monges, que a religião é uma opção particular das pessoas. — Os sacerdotes modernistas querem nos incutir que a religião tem a ver com sentimento. Mas nós dizemos que não, que a religião é verdade, é objetividade. E, se uma delas é a verdadeira, as outras, obviamente, são falsas. Isso é matemática simples — arremata dom Tomás.
Não é de espantar que a postura liberal do Papa Francisco dê calafrios nos monges. O superior do mosteiro acredita que o conservador cardeal americano Raymond Burke teria sido uma escolha mais razoável para assumir o papado, após a morte de São João Paulo II — que, aliás, os integrantes do mosteiro não consideram santo, mesmo após a canonização. O cardeal Burke chegou a ser afastado da presidência do Supremo Tribunal do Vaticano pelo Papa Francisco, no fim do ano passado, por defender a discriminação dos homossexuais. O fato, no entanto, apenas faz os monges verem o cardeal com mais bons olhos. — Não fomos nós que inventamos a moral. É Deus que nos dita. Alguns comportamentos nós podemos tolerar, para o bem comum, mas não aprovar, nem incentivar — comenta, evasivo, sobre a homossexualidade.
O papel das mulheres na sociedade, por sua vez, é bem delimitado aos olhos dos monges. As fiéis que frequentam a igreja são aconselhadas a usarem roupas discretas e a não ambicionarem uma carreira que as faça ficar muito tempo longe de casa. — Hoje em dia, a missão de ser mãe foi rebaixada. Queremos lembrar às mulheres o quão importante é esse papel. E não dá para uma mulher ficar dias em uma plataforma de petróleo e ser boa mãe ao mesmo tempo. Ela tem que escolher — diz o religioso, repetindo esse exemplo pelo menos mais uma vez ao longo da entrevista. — A missão da mulher é diferente da do homem, ela não precisa imitá-lo.
Nem mesmo esportes escapam da lista de censuras. — Uma mulher que joga futebol ou luta boxe acaba perdendo um pouco da feminilidade. Não é aconselhável — aponta ele, que deixa a voz mais firme quando fala sobre aborto. — É um erro aos olhos de Deus. Não é algo natural.
Dom Tomás enfatiza que uma família “normal” é aquela com muitos filhos, isto é, sem que os pais façam uso de métodos contraceptivos. Ao ser lembrado de que Jesus, no entanto, foi filho único, ele para por cinco segundos e franze o cenho de leve. — Bem colocado... Mas Jesus era tão único que é a exceção. E não podemos fazer da exceção a regra — cita ele, emendando numa calma risada.
Quando o assunto da conversa chega a temas que o monge caracteriza como “sensíveis”, como o fato de o bispo Williamson já ter negado a existência de câmaras de gás nos campos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial, Dom Tomás desconversa. — Às vezes bispo Williamson se expressa de maneira impactante e é mal compreendido. Não sou historiador, então não tenho o que dizer sobre o assunto.
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