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sexta-feira, 21 de maio de 2021

101º aniversão de São JOÃO PAULO II - Um discípulo da liberdade - Ana Paula Henkel

Papa João Paulo II - Santo Domingo, 1979
Papa João Paulo II - Santo Domingo, 1979 | Foto: Winston Vargas 
 
Antes da 1ª Guerra Mundial, o território polonês foi dividido entre os impérios alemão, russo e austro-húngaro. Essas potências, juntamente com França e Grã-Bretanha, lutavam pelo domínio do continente. Embora a Polônia não existisse como Estado independente, sua posição geográfica e suas terras entre as potências em combate foram testemunhas de muitas batalhas e terríveis perdas humanas e materiais entre 1914 e 1918. No rescaldo da guerra, após o colapso dos impérios, a Polônia se tornou uma República independente.

No país ainda devastado, a jovem Emilia Kaczorowska descobre que está grávida e é aconselhada a abortar. Se prosseguisse com a gravidez, poderia perder a própria vida. “Sua gestação está seriamente em risco e não há possibilidade de concluí-la, nem de você ter um filho saudável”, disse um dos melhores médicos da região onde morava. Além do quadro clínico complexo, Emilia estava em uma nação ameaçada por instabilidades, conflitos armados e invasões. De modo que o aborto parecia mesmo uma solução plausível. Apoiada pelo marido, a jovem aceitou o risco e decidiu ter o bebê, ainda que lhe custasse a vida. Em 18 de maio de 1920, na cidade de Wadowice, após meses de angústia e uma gravidez delicada, nasceu Karol Józef Wojtyla.

Como toda criança, Karol adorava praticar esportes como futebol e esqui. Ainda na adolescência, desenvolveu o gosto pelas artes. Como ator e dramaturgo, chegou a participar de diferentes grupos teatrais. Sua paixão pelo palco era profundamente ligada ao desejo de manter vivas a cultura e as tradições polonesas.

Em 1939, com a invasão alemã da Polônia na 2ª Guerra Mundial, a universidade na qual o jovem Karol estudava foi fechada, e ele, obrigado a se alistar no serviço militar e trabalhar em uma mina de calcário. Aos 20 anos, já não tinha por perto mais nenhum membro da família. Todos estavam mortos. Nos anos seguintes, interessado na vida sacerdotal, o jovem polonês se dedica aos estudos de forma clandestina, absolutamente secreta e escondida dos alemães. Em janeiro de 1945, as tropas nazistas deixam a cidade e a vida no seminário volta ao normal. A ordenação sacerdotal de Karol Wojtyla acontece no ano seguinte, em 1º de novembro de 1946.

E aqui começa uma nova história para o jovem polonês e para o mundo. Em 1958, então com 38 anos, Karol Wojtyla é ordenado bispo auxiliar de Cracóvia. Nove anos depois, é nomeado cardeal pelo papa Paulo VI. Após onze anos de intenso trabalho e defesa da fé como cardeal, a Igreja o escolhe para uma nova missão. Ele é eleito papa pelo segundo conclave papal de 1978 — convocado após a morte precoce de João Paulo I, que liderou a Igreja Católica por apenas 33 dias, depois de suceder a Paulo VI. Os sinos da Basílica de São Pedro, no Vaticano, anunciavam que Karol Wojtyla, agora João Paulo II, era o novo pontífice.

Os católicos amam o papa João Paulo II por sua santidade, como demonstrado, entre outras formas, por seu evangelismo pregado na premissa do amor ao próximo e pela longa resistência no papado, apesar de sua doença. Para historiadores seculares, no entanto, nenhuma das realizações do santo papa, beatificado em 2011 e canonizado em 2014, parece maior do que seu papel no final da Guerra Fria e na queda do comunismo soviético.

Em 9 de novembro de 1989 caía o Muro de Berlim, sinalizando o absoluto colapso do comunismo na Europa Oriental. Foi um momento lembrado vividamente por aqueles que atravessaram a devastação e os horrores do regime. Porém, poucos se lembram do evento crucial alguns meses antes, em junho de 1989, quando a Polônia finalmente realizou eleições livres e justas. Os comunistas não conquistaram um único assento no Parlamento. Com os resultados impressionantes do pleito, todo o bloco do leste foi destruído, com destroços espalhados até a base do Muro de Berlim. A Polônia havia se tornado um pavio aceso nos fundamentos da Cortina de Ferro.

Uma pessoa que não se surpreendeu com o catalisador das eleições polonesas foi o primeiro papa polonês da Igreja, seu primeiro papa eslavo e seu primeiro papa não italiano em 455 anos. Uma década antes daquelas eleições históricas, quando questionado sobre qual país queria visitar primeiro, João Paulo II não hesitou na resposta. Planejou ansiosamente um retorno triunfante à sua pátria. As autoridades comunistas também planejaram a viagem. Esconderam do mundo os detalhes da santa visita ao país tomado pelos marxistas, numa vã tentativa de parar o que parecia ser inevitável.

A recepção ao papa foi colossal. Um milhão de pessoas entoavam nas ruas da capital polonesa: “QUEREMOS DEUS! QUEREMOS DEUS!”. A Polônia mostrava ao mundo que não se entregaria aos comunistas. A Praça da Vitória em Varsóvia era, até ali, conhecida como um símbolo de resistência ao totalitarismo da 2ª Guerra Mundial. Na visita de João Paulo II, tornou-se símbolo de resistência ao totalitarismo da Guerra Fria.

Foi durante sua homilia, escrita pelo papa à mão e que ele sabia de cor, que o filho polonês entregou uma mensagem não apenas para os católicos ou para os cristãos em geral. A mensagem também atingia os comunistas ateus que fecharam as portas do diálogo, das fronteiras, dos sistemas econômicos, das culturas e civilizações sob seu controle: o poder salvador da fé cristã fará seu sistema colapsar. E isso foi apenas o início de uma avalanche contra o mundo comunista. A declaração mais significativa na homilia, a afirmação política mais forte do pontífice em todos os nove dias no país, onde 13 milhões de pessoas o seguiram, era categórica: “Não pode haver Europa justa sem a independência da Polônia marcada em seu mapa!”. 

Ele nos mostrou que acima de crenças e ideologias está a defesa inviolável da liberdade  Foi um tiro ouvido em Moscou. Nada mais precisava ser dito. O Kremlin sabia, e os poloneses também, que era uma declaração significativa. Ali estava uma voz que não devia — e não podia — ser suprimida. Ali estava uma voz que não tinha medo; como nas palavras da frase que ele usou em inúmeros e inesquecíveis discursos e que se tornaram uma de suas marcas registradas: Non abbiate paura!”. Não tenham medo.

Após a visita de 1979, era impossível para a Polônia permanecer a mesma. No ano seguinte, o sindicato Solidariedade foi fundado no estaleiro de Gdansk,  espalhando-se por todo o país e reunindo mais 10 milhões de membros, um terço da força de trabalho local. Historiadores acreditam ser seguro afirmar que o Solidariedade foi o maior movimento de protesto não violento da História. Mesmo que os não crentes fossem proeminentes na liderança do sindicato, sua natureza católica e cristã era inconfundível. Os trabalhadores em greve não queriam apenas ganhos materiais ou políticos. Cobravam que o governo respeitasse sua dignidade e os direitos dados por Deus. Durante os protestos do Solidariedade, os trabalhadores rezavam e os padres celebravam missas. Imagens de João Paulo II e da Virgem Negra de Czestochowa eram carregadas por todo o país.

Os comunistas temiam o pavio da liberdade e fé que João Paulo II acendia por onde passava. Em 1981, enquanto cumprimentava os fiéis diante das câmeras de TV na Praça de São Pedro, o papa foi baleado por Mehmet Ali Agca, um agente búlgaro. O assassino treinado esperou o dia todo por sua chance. Usando arma semiautomática, disparou quatro tiros à queima-roupa, atingindo o papa na mão e no abdômen. O pontífice desabou nos braços de seus assessores, enquanto fiéis agarraram o autor dos disparos, impedindo uma tentativa de fuga. O médico responsável pela cirurgia de João Paulo II disse que a bala que cortou o abdômen não atingiu sua veia abdominal principal por 5 ou 6 milímetros. Se aquela veia tivesse sido cortada, o papa teria sangrado até a morte em cinco minutos. Em 1983, João Paulo II visitou Ali Agca na prisão para perdoá-lo. (Dê uma chegadinha ali no YouTube e assista às fortes imagens do atentado, mas também do perdão e amor ao próximo de uma maneira poucas vezes vista na humanidade.)

Foi também em 1983 que o papa visitou a Polônia pela segunda vez, logo depois que o governo local impôs a lei marcial para suprimir o movimento pela democracia. O papa se reuniu com o general Wojciech Jaruzelski e pediu a outros países que suspendessem as sanções econômicas. Ele também defendeu publicamente os sindicatos independentes como porta-vozes da luta por justiça social. Nos anos seguintes, o papa continuou a encorajar o movimento pela democracia com discursos semanais no rádio em polonês. Em 1989, num contexto de movimentos de abertura do líder soviético Mikhail Gorbachev, o governo polonês concordou com a realização de uma mesa-redonda de negociações com representantes do Solidariedade e da Igreja Católica.

Como resultado dessas negociações, as eleições de junho de 1989 levaram à formação de um novo governo, liderado por um primeiro-ministro não comunista. Em poucos meses, o Muro de Berlim caiu e os regimes comunistas ruíram na então Checoslováquia e na Romênia. A busca pela independência de outros Estados do bloco soviético e nas repúblicas sob controle do Kremlin finalmente levou ao fim da União Soviética, em 1991.

“Tudo o que aconteceu na Europa Oriental nestes últimos anos”, escreveu Gorbachev em 1992, “teria sido impossível sem a presença desse papa e sem o importante papel, incluindo o papel político, que ele desempenhou no cenário mundial.”

Não dá para descrever o legado de Karol Wojtyla em apenas um artigo. Há incontáveis vertentes a ser abordadas, como sua amizade com o presidente norte-americano Ronald Reagan e com a primeira-ministra britânica Margaret Thatcher, relacionamento que foi estratégico para o fim da Guerra Fria e a queda do Muro de Berlim. Como um líder religioso, o papa levou multidões a professar a fé cristã por todo o mundo, abalando as bases ateístas do comunismo. João Paulo II foi muito mais que um papa. O bebê que quase não nasceu, e depois arriscou a própria vida, viajou o mundo inteiro, estabeleceu diálogo com outras religiões e chefes de Estado. Ele nos mostrou que acima de crenças e ideologias está a defesa inviolável da liberdade.

Com a alma forjada na severidade de reais conflitos, São João Paulo II foi excepcionalmente preparado para enfrentar o comunismo. A Polônia perdeu a 2ª Guerra Mundial duas vezes, primeiro para os nazistas e depois para os comunistas. Quando menino, Karol Wojtyła viveu sob a opressão de ambos. Muito antes de se tornar papa, havia concluído que o conflito com o comunismo era, em última análise, um conflito no reino espiritual.

Para nós, que vivemos em tempos estranhos, com ordens executivas draconianas e projetos de tirania espalhados pelo mundo sob um falso manto de bondade e preocupação em meio a uma pandemia, a mensagem ressoa insistentemente, como os sinos da Basílica de São Pedro ao anunciar um novo papa: non abbiate paura.

Leia também “Estado laico, sim. Mas não antirreligioso”

Transcrito  Revista Oeste - Nossos agradecimentos

 

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