Bento XVI testemunhou o calvário de seu antecessor. E tomou o caminho oposto
Principal interlocutor de João Paulo II no fim de seu pontificado, o então cardeal Ratzinger viu de perto como o polonês transformou seu sofrimento numa manifestação de fé.
O alemão, porém, rompeu com a tradição da qual era considerado o mais feroz protetor
Nos últimos dois anos, as aparições públicas do papa Bento XVI passaram a despertar as lembranças da reta final do pontificado de seu antecessor, João Paulo II - e não por causa da forte ligação pessoal entre os dois. Assim como o pontífice polonês, o alemão, que mostrava boa condição de saúde na primeira metade de seu papado, passou a ser incapaz de ocultar seu sofrimento. Os sinais claros de que a idade pesava sobre seus ombros - a voz frágil, os movimentos lentos, o olhar com aspecto vitrificado, a necessidade de auxílio para se movimentar - já despertavam as mesmas preocupações que cercaram João Paulo II no crepúsculo da vida. Os especialistas começavam a listar possíveis sucessores.
Os organizadores da Jornada Mundial da Juventude, no Rio, em julho deste ano, preparavam-se para lidar com a provável ausência do pontífice. Ainda assim, o início repentino da sucessão papal chocou a todos - afinal, ninguém pensava na possibilidade de renúncia. O anúncio feito nesta segunda-feira por Bento XVI é surpreendente não apenas pelo histórico da Igreja Católica (o último a deixar o Trono de Pedro por vontade própria foi Gregório XII, em 1415) mas também pelo forte contraste em relação ao desfecho escolhido pelo alemão, que acompanhou de perto o antecessor em seu calvário público - e testemunhou, também, a prova de fé do polonês ao suportar o sofrimento por acreditar que só a morte deveria interromper sua missão como papa.
O então
cardeal Joseph Ratzinger foi a figura mais influente e poderosa do Vaticano no
pontificado de João Paulo II (com exceção do próprio papa, evidentemente). Os
dois tinham uma fortíssima ligação, já que compartilhavam de visões parecidas a
respeito do estado da Igreja e do futuro do catolicismo. Como homem forte do
papa na defesa da doutrina, o alemão era um dos interlocutores mais frequentes
de João Paulo II - talvez só os auxiliares pessoais do papa tivessem mais
acesso a ele. Nesse contexto, Ratzinger acompanhou ao vivo, e sempre muito de
perto, cada momento da luta do pontífice contra sua doença. Ele já não
conseguia andar, falar nem mastigar, com a maior parte de seus músculos
internos enrijecida pelo Parkinson.
Ainda assim, seguia tentando cumprir seus
compromissos públicos - e protagonizando cenas comoventes de devoção e fé. O
terceiro pontificado mais longo de todos os tempos chegou a seu término com uma
exposição pública de dor jamais vista na história da Igreja Católica. Mas houve
um sentido nisso. Paralisado e silenciado pela doença, João Paulo II
transubstanciou seu calvário particular numa mensagem universal: a de que não
existe redenção sem sofrimento (uma mensagem sobre a qual, aliás, se alicerça o
cristianismo). João Paulo II carregou sua cruz diante dos olhos do mundo.
Muitos podiam não concordar com tudo o que o papa polonês pregou e defendeu.
Mas tornou-se impossível não admirá-lo pela sua coragem na saúde e na doença,
na vida e na morte.
Aclamado pelos fiéis na cerimônia fúnebre vista por mais pessoas na
história, João Paulo II consolidou entre os fiéis a noção de que, apesar
de permitida pelos códigos do Vaticano, a renúncia não era uma hipótese
aceitável na prática, por significar o fim prematuro de uma missão
divina confiada ao sumo pontífice, o escolhido de Deus - através dos
votos do colégio de cardeais - para comandar a Igreja. A decisão de
Bento XVI de interromper voluntariamente seu pontificado chocou os fiéis
justamente por isso: poucas pessoas no mundo conhecem mais sobre a
história do papado do que o alemão e talvez ninguém no planeta tenha
acompanhado mais de perto o exemplo de João Paulo II. Sua renúncia,
portanto, nunca foi seriamente cogitada por ninguém que não o próprio
papa. O que, afinal, convenceu Bento XVI a tomar essa decisão tão
inesperada?
Por enquanto, seu pronunciamento oficial - que diz apenas
que ele "não tinha mais forças para exercer adequadamente o ministério
petrino" - é insuficiente para que se saiba mais a respeito de sua real
condição. O Vaticano não fala sobre nenhuma doença específica. Sobre
pelo menos uma coisa não há dúvidas, pelo menos até agora: Bento XVI
está plenamente consciente e convicto de sua decisão, por mais que ela
contrarie tudo o que se esperava dele. "No mundo de hoje, sujeito a
rápidas mudanças e agitado por questões de grande relevância para a vida
da fé, é necessário também o vigor quer do corpo quer do espírito",
escreveu o papa. "Tenho de reconhecer a minha incapacidade para
administrar bem o ministério que me foi confiado." Se João Paulo II foi
apelidado de "o papa das surpresas", Bento XVI era visto como o
pontífice do continuísmo, da transição sem sobressaltos. Em seu último
lance, rompeu com a tradição - e acabou surpreendendo mais até que o
antecessor.
Fonte: Revista VEJA
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