Vaticano já  atribui esses casos à intervenção divinaConheça as recentes histórias de brasileiros que se livraram de graves doenças  sem que a medicina e a ciência encontrassem uma explicação. Aos 36 anos, o engenheiro Alcimir Inácio Luiz viu sua vida entrar num mar  revolto e assustador. Descobriu que tinha um agressivo tumor no intestino,  foi submetido à quimioterapia e recebeu dos médicos o prognóstico de  esterilidade. “Eles disseram que eu não poderia mais ter filhos”, lembra o  morador de São Vicente (SP). As chances de ficar estéril eram tamanhas que  recomendaram o congelamento de esperma antes do bombardeio químico. Luiz encarou  o tratamento, que durou dois anos e o curou, mas, em tese, o deixou infértil. Os  médicos atestam que é raríssimo alguém ter filhos após ser submetido à  quimioterapia. “Mas medicina não é matemática e há exceções ”, ressalva José  Carlos Carvalho, hematologista que acompanhou Luiz. O caso do engenheiro foi uma  dessas. Mas ele troca a palavra exceção por milagre. Em 2007, sua mulher  engravidou de Pedro. “Recebi dois milagres: Deus curou meu câncer e me deu mais  um filho”, diz, sob as águas calmas da fé. 
 Eram oito horas da noite do dia 8 de junho de 2010 e a Capela Santo  Antônio, em Salvador, Bahia, estava lotada. Cerca de 500 pessoas se reuniam para  ver, pela última vez, Irmã Dulce, candidata a santa brasileira que, até o final  deste ano, deve ser alçada à condição de beata, o último passo antes da  canonização. A religiosa baiana seria transferida para uma urna lacrada, dentro  de um novo templo, construído especialmente para ela. Passados 18 anos da morte  da freira, era de esperar que houvesse sobrado pouco de seus restos mortais,  talvez apenas alguns fragmentos de ossos e parte das vestes.
 Mas não foi isso que aconteceu. Atônito, o público presente ao local viu a  senhora de estatura franzina com o hábito azul e branco intocado, a pele  intacta, apenas murcha e um tanto enegrecida, e sem exalar nenhum odor, natural  nessas circunstâncias. A religiosa amiga do papa João Paulo II (1920-2005), que  dedicou a vida a ajudar os necessitados, parecia ter morrido não em 1992, mas  ontem. Como isso podia acontecer? Para os que têm fé, não há necessidade de  perguntas, pois eles já conhecem a resposta. O inexplicável, o sobrenatural, o  imponderável, seja como queiram chamar esses fenômenos extraordinários, nada  mais são do que a intervenção divina. Portanto, quem crê tem na ponta da língua  a resposta para a surpreendente preservação do corpo de Irmã Dulce. Com  serenidade, sentencia, solenemente: foi milagre.
 Fratura de crânio, parada cardíaca, coma e recuperação sem  sequelas
“Meu Deus, sou médica e vou ver meu filho morrer na  minha frente”, pensou Eliana Polotto, a bordo da ambulância que levava o corpo  quase sem vida de seu menino de 5 anos para o hospital. João Paulo havia sido  atropelado por um caminhão na manhã daquele dia 26 de abril de 1996, em Barra  Bonita (SP), durante uma excursão escolar. A cabeça foi a mais atingida –  desacordado, João sangrava pela orelha, boca e nariz. Um senhor acudiu mãe e  filho e os levou ao hospital mais próximo. A gravidade era tamanha que ele teve  de ser transferido para a Santa Casa da cidade vizinha, Jaú. Durante os 15  minutos que se seguiram, a médica viu o filho quase morrer. Na ambulância ela  segurava o pulso da criança em busca do ritmo cardíaco que se esvaía. “Pensei em  entubá-lo, mas não tinha material, então só me restou rezar.” Eliana e a  enfermeira se uniram para pedir proteção divina. Enquanto isso, no colégio onde  o garoto estudava, os alunos oravam pelo colega. João chegou a Jaú com  traumatismo craniano grave e parada cardiorrespiratória. A chance de sobreviver  era pequena e a de sobrevida sem sequelas praticamente nula. Mas em quatro dias  o garoto acordou pedindo Coca-Cola e em 15 estava em casa andando de patins.  Hoje, aos 20 anos, estuda engenharia numa das mais prestigiadas universidades do  País. “A medicina não explica uma melhora tão rápida e plena”, diz o  neurologista Odérzio Marcato, que acompanhou João. O Vaticano reconheceu o caso  como milagre.
A maioria das denominações religiosas crê em  milagres  
mas os católicos são os únicos que usam o  rigor científico para conferir o selo apostólico romano de miraculosidade. Não  podia ser diferente. Para os cristãos, o primeiro a fazer milagres foi Jesus  Cristo, que multiplicou pães, transformou água em vinho e fez um morto voltar à  vida, entre outros gestos, segundo contam os evangelistas no Novo Testamento.  Para estar à altura de um ato que já foi executado pelo Filho de Deus, dois mil  anos depois de sua passagem pela Terra, um caso só é considerado milagre depois  do aval de uma comissão mista de teólogos e cientistas do Vaticano. Precisa ter  pureza canônica – validade religiosa comprovada por au
tori
dades em teologia – e,  ao mesmo tempo, avançar sobre terreno que a ciência contemporânea não domina e  para o qual não existe explicação racional. Em razão dessas rigorosas  exigências, quase todas as graças contemporâneas católicas são de curas  inexplicáveis em que houve invocação divina. Casos nos quais médicos, crentes e  não crentes, do local onde a história ocorreu e de outros países, se debruçam e,  após rigorosa e detida análise, chegam ao veredicto: “Não há explicação para a  cura.” Ao longo desta reportagem, 
ISTOÉ mostrará algumas histórias recentes que  já passaram, ou estão passando, pelo crivo da Santa Sé.
O sonho de se tornar mãe costumava durar cinco meses. Ao fim desse período,  a professora Sandra Grossi, de Brasília, embarcava num pesadelo. Portadora de  uma anomalia uterina chamada hipoplasia didelfa, seu útero era muito pequeno e  dividido por uma membrana, o que o impedia de acomodar um feto com mais de 20  semanas. Quando ele crescia, Sandra era tomada por dores e seu corpo expulsava o  bebê. Foram três abortos e muito sofrimento. Na quarta tentativa, em 1999, ela  tomou pílulas de Frei Galvão, brasileiro que se tornou santo
 em 2007. Conseguiu  levar a gravidez até a 31ª semana. “Clinicamente ela tinha que ter abortado  entre a 20ª e a 25ª semanas”, atesta Vera Lúcia Lopes, obstetra que acompanhou  Sandra. Mesmo muito prematuro, Enzo nasceu saudável, no dia 11 de dezembro de  1999. Cinco dias depois, foi para casa – outro fato que ganhou contornos de  imponderável.“A medicina não explica o que aconteceu”, afirma Vera. O Vaticano  reconheceu o caso como milagre. E Frei Galvão ganhou mais um devoto, hoje um  saudável garoto de 10 anos. Nem sempre houve todo esse apuro e rigidez na hora de definir pela  existência ou não de um milagre. E o motivo é simples – antigamente, a ciência  ainda não havia se desenvolvido e a Igreja Católica gozava de poder e influência  substancialmente superiores às poucas academias independentes. Atribuir o  inexplicável aos desígnios de Deus ou à intercessão de um santo era mais  justificável porque havia uma série de fenômenos sem explicação. Mas a ciência  evoluiu tanto, principalmente nos últimos 100 anos, que a situação se inverteu.  “O avanço do século XX obrigou a Igreja a se modernizar para não passar  ridículo”, explica o sociólogo Ricardo Mariano, da Pontifícia Universidade  Católica (PUC) de Porto Alegre. Sobrou pouco espaço para o milagre, que acabou  dando lugar à graça, também um favor ou benefício concedido por Deus, mas de  alcance mais cotidiano, que hoje responde pelo grosso do que se julga ser  intercessão divina. Isso não quer dizer que o milagre desapareceu. Entre os  católicos, ele floresce. Tome-se o caso de Irmã Dulce como exemplo. Para que a  religiosa baiana alcance o status de santa, a comissão responsável por seu  processo de canonização precisa reunir documentos que comprovem pelo menos dois  milagres inexplicáveis pela ciência atribuídos a ela. Essa é a realidade para  todas as causas de santificação. No Brasil, há 60 em andamento. Isso pressupõe,  portanto, a existência de pelo menos 120 possíveis intervenções divinas, apenas  no País.
MISTÉRIO
O corpo de Irmã Dulce, que  morreu há 18 anos, permanece intacto
Tumor maligno no cérebro. Esse foi o diagnóstico recebido pelos cearenses  Mauro e Valéria Feitosa após exames realizados no filho Mauro, 13 anos. A data o  casal não esquece: 12 de junho de 2002. “Não queríamos acreditar”, diz Mauro.  Diante da gravidade da situação, a família decidiu viajar no dia seguinte para  São Paulo, a fim de que o adolescente fosse tratado num hospital de ponta.  Maurinho foi internado no Hospital Albert Einstein e preparado para a cirurgia  de retirada do tumor, já no dia 15 de junho. Devoto de Irmã Dulce, o pai pediu  que lhe enviassem uma relíquia da freira baiana. “Mas ela não chegaria a tempo  se a operação acontecesse nesse dia”, explica Mauro. E não chegou, mas a  cirurgia foi adiada em 12 dias – tempo suficiente para o objeto de devoção  encontrar as mãos aflitas dos pais. Às 11h da quarta-feira 26 de junho, a  intervenção começou. Prevista para demorar 16 horas, só levou três horas e meia.  O tumor, grande, estava praticamente solto no crânio, fácil de ser retirado. E  era benigno. “Foi, no mínimo, muita sorte”, diz Flávio Leitão, neurologista que  atendeu o garoto. Maurinho não fez radioterapia nem quimioterapia. “Desde o  começo sabia que o médico dos médicos estava cuidando do meu filho”, diz Mauro.  A documentação do caso foi enviada à sede da obra de Irmã Dulce, em Salvador, e  incluída no processo de canonização.
Mauro Feitosa Júnior, natural de Fortaleza, no Ceará, é um dos casos nacionais  encaminhados ao Vaticano. Diagnosticado com um tumor maligno no cérebro em 2002,  aos 13 anos, ele viu seu prognóstico se reverter em menos  de um mês. Nesse meio-tempo, seu pai, Mauro Feitosa Gonçalvez, organizou uma  corrente de oração para pedir a intercessão de Irmã Dulce pela saúde de seu  filho. “Sinto que fui sequestrado por Jesus nesse tempo que o Maurinho ficou  doente”, lembra, emocionado. “E a carcereira foi Irmã Dulce, que no fim me  libertou com o milagre da cura do meu filho.” Para explicar o que aconteceu ao  Vaticano, a família Feitosa se desdobra para reunir documentos médicos e  comprovações religiosas – um trabalho hercúleo.
 Desenganada pelos médicos   Os filhos de Antônia Marcelino, 64 anos, já tinham orçado o caixão da mãe,  internada com infecção generalizada na UTI do Hospital Humanitas, em Três  Pontas, Minas Gerais. Era noite do dia 30 de maio de 2001 e o médico havia dito  à família que só um milagre salvaria Antônia. A senhora mineira tinha sido  internada três dias antes para uma cirurgia de rotina, mas contraiu uma infecção  hospitalar que evoluiu para um quadro de septicemia tão grave que seus órgãos  pararam de funcionar. Impotente, a família passou a rezar fervorosamente para o  padre Francisco de Paula Victor, um sacerdote venerado na cidade que está no  início do processo de canonização. Já no dia seguinte ao veredicto fatal, ela  começou a melhorar, até que se recuperou plenamente. Para o médico Fernando  Prado, que acompanhou o caso, o que surpreende é que ela deveria ter ficado com  sequelas, tamanha a gravidade da situação, e isso não ocorreu. A família  Marcelino olha para a imagem de padre Victor em lugar nobre na sala e entende o  porquê.
 As razões que levam alguém a enfrentar uma verdadeira via-crúcis para  comprovar uma intervenção celestial têm explicação. “O milagre se impõe de  maneira tão poderosa que acaba agindo como um grande cala a boca para os que  duvidam do poder divino”, afirma Antônio Flávio Pierucci, professor de  sociologia da Universidade de São Paulo (USP). “Ele simultaneamente preenche a  busca por certeza do fiel e testa o ceticismo de quem não crê.” Nesse sentido, a  intercessão sobrenatural recebida por um alimenta a esperança do outro. E essa  confiança age como um bálsamo para o fiel, mesmo que ele nunca venha a ser  objeto da intervenção divina.
São muitos os estudos que comprovam que a fé tem efeito positivo sobre a saúde.  Essa área de pesquisa, batizada de neuroteologia, tem crescido  significativamente. Está provado, por exemplo, que crer em Deus ou em algo  transcendente provoca reações no organismo que reduzem a produção de substâncias  como o hormônio cortisol, que, em excesso, enfraquece o sistema imunológico  (leia quadro na página ao lado). “A pessoa que ora está mais protegida”, afirma  o médico Roque Savioli, autor de “Milagres Que a Medicina Não Contou” (Editora  Gaia) e defensor de um diálogo mais franco e aberto entre ciência e religião. Já  um estudo de 2010 da Rush University Medical Center (EUA) apontou que a fé  aumenta em 75% as chances de sucesso no tratamento da depressão. Outro  levantamento, conduzido pelo Dana-Farber Cancer Institute (EUA), mostrou que em  casos de tratamento paliativo, quando o doente está em fase terminal, quem tem  fé registra um índice de bem-estar 28% superior. Para o neurocirurgião Raul  Marino Júnior, professor de bioética da Faculdade de Medicina da USP e autor do  livro “A Religião do Cérebro” (editora Gente), ter algum tipo de fé é sempre  melhor que ser ateu. “A vida fica sem propósito se a pessoa achar que é formada  de carbono, cálcio, fósforo e magnésio”, afirma.
Mas, se por um lado o ceticismo pode ser maléfico, a credulidade excessiva  também oferece seus riscos, ainda mais diante de denominações religiosas que  tratam a fé como uma mercadoria e oferecem graças como moeda de troca. O  importante é não condicionar a crença à ocorrência desse tipo raro de fenômeno.  “O milagre é um sinal de Deus que deve apenas confirmar a nossa fé”, explica a  irmã Célia Cadorin, maior autoridade do País em canonização. Mesmo entre os que  acreditam, paira a pergunta: por que alguns são agraciados e outros não? A  resposta oficial dos católicos vem embalada numa palavra que parece feita para  impedir um segundo questionamento – a inescrutabilidade dos desígnios de Deus.  Traduzindo, os propósitos divinos seriam insondáveis. Para quem crê, o que  importa é que Ele continua estendendo sua mão para a humanidade.
Fonte: Revista IstoÉ