O fim do mundo em 2012
Os planetas, as estrelas, o calendário maia e, é    claro, uma superprodução de Hollywood reavivam a ideia aterrorizante    do apocalipse e levantam uma questão: por que continuamos a acreditar    em profecias finalistas apesar de todas elas terem fracassado  redondamente?
O escritor Patrick Geryl tem 54 anos, escreveu uma dezena de livros,                  nunca se casou, não tem filhos e atualmente anda muito  ocupado preparando-se                  para o fim do mundo. Na semana passada, esteve em Sierra  Nevada, no sul da Espanha,                  acompanhando uma equipe de televisão do Canadá, numa  vistoria                às habitações que estão sendo construídas                  ali. São ocas de cimento capazes de resistir ao  cataclismo que, acredita                  Geryl, destruirá o planeta Terra no dia 21 de dezembro  de 2012. "Queremos                  um lugar a uns 2 000 metros acima do nível do mar",  explica.                  Ele e seu grupo pretendem levar 5 000 pessoas para um  local que resistirá                aos horrores do apocalipse. Será o último dia do resto da  humanidade,                  acredita Geryl, um dia para o qual ele se prepara desde a  adolescência,                  quando, aos 14 anos, na histórica cidade belga de  Antuérpia, começou                  a se interessar pelo assunto lendo livros de astronomia.  Ao voltar da Espanha,                  Geryl ocupou-se em relacionar os itens que devem ser  levados para o bunker antiapocalipse.                  Na lista coletiva, havia 348, faltando ainda incluir os  medicamentos. Na de                  uso individual, 86. 
O ano de 2012 tornou-se o centro de gravidade do fim do mundo                  por uma confluência de achados proféticos. Primeiro,  surgiu a tese                  de que a Terra será destruída com a volta do planeta  Nibiru em                  2012. Depois, veio à tona que o calendário dos maias,  uma das                  esplêndidas civilizações da América Central  pré-colombiana,                  acaba em 21 dezembro de 2012, sugerindo que se os maias,  tão entendidos                  em astronomia, encerraram as contas dos dias e das  noites nessa data é                porque depois dela não haverá mais o que contar.  Posteriormente,                  apareceram os eternos intérpretes de Nostradamus e, em  seguida, vieram                  os especialistas em mirabolâncias geológicas e  astronômicas                  com um vasto cardápio de catástrofes: reversão do campo                  magnético da Terra, mudança no eixo de rotação do                  planeta, devastadora tempestade solar e derradeiro  alinhamento planetário                  em que a Terra ficará no centro da Via Láctea – tudo em  2012                  ou em 21 de dezembro de 2012.
 
APOCALIPSE POPULAR
Uma das cenas da catástrofe  planetária no filme 2012: a profecia ganhou as ruas
 
CADA ERA TEM O SEU ANTICRISTO
Escultura de Nero, imperador  de Roma, corpos de judeus num campo de concentração    nazista e o terrorismo islâmico derrubando as torres de Nova York: a  ideia do apocalipse é um desastre como previsão do futuro, mas excelente  como alegoria do presente                        
Com tantas sugestões, a profecia ganhou as  ruas. No dia                  13 de novembro, terá lugar a estreia mundial de 2012,  uma superprodução                  de Hollywood que conta a saga dos que tentam  desesperadamente sobreviver à                catástrofe final. No site da Amazon, há 275 livros sobre  2012.                  Nos Estados Unidos, já existem lojas vendendo produtos  para o apocalipse.                  Os itens mais comercializados são pastilhas  purificadoras de água                  e potes de magnésio, bons para acender o fogo. É sinal  de que                  os compradores estão preocupados com água e fogo, numa  volta ao                  tempo das cavernas. Na Universidade Cornell, que mantém  um site sobre                  curiosidades do público a respeito de astronomia,  disparou o número                  de perguntas sobre 2012. Há os que se divertem, pois não  acreditam                  na profecia. Entre os que acreditam, os sentimentos vão  da tensa preocupação,                  como é o caso de Patrick Geryl, autor de três livros  sobre 2012,                  todos publicados no Brasil, até o pavor incontrolável. O  fim do                  mundo é uma ideia que nos aterroriza – e, nesse  formidável                  paradoxo que somos nós, também pode ser a ideia que mais  nos consola.                  Por isso é que ela existe.
No inventário dos fracassos  humanos, talvez não                  haja aposta tão malsucedida quanto a de marcar data para  o fim do mundo.                  Falhou 100% das vezes, mas continua a se espalhar,  resistindo ao tempo, à                razão e à ciência. As tentativas de explicar esse fenômeno                   são uma viagem fascinante pela alma, pela psique, pelo  cérebro                  humano. Uma das explicações está no fato de que o nosso                  cérebro é uma máquina programada para extrair sentido do                   mundo. Assim, somos levados a atribuir ordem e  significado às coisas,                  mesmo onde tudo é casual e fortuito. As constelações no                  céu, por exemplo, são uma criação mental para organizar                  o caos estelar. Ao enxergarmos as constelações de Órion                  ou Andrômeda, encontramos ordem e sentido. O dado  complicador é                que a vida, no céu e na terra, deve muito mais às  contingências                  do acaso do que ao determinismo. O espermatozoide que  fecundou o óvulo                  que gerou Albert Einstein foi um produto do acaso,  resultado de uma disputa                  entre espermatozoides resolvida por milésimos de  segundo. Assim como                  aconteceu, poderia não ter acontecido.
Recuando no tempo, a própria  humanidade, analisada do ponto                  de vista científico, é fruto do acaso. Por um acidente,  um peixe                  pré-histórico desenvolveu barbatanas que, à imitação                  de pernas ou patas, lhe permitiram enfrentar a gravidade  da Terra e, assim,                  por acaso, viabilizou o desenvolvimento de vertebrados  fora da água.                  Bilhões de anos depois, cá estamos nós, bípedes,                  inteligentes, comendo sorvete de morango, descobrindo a  estrela mais antiga                  e nos deliciando com Elizabeth Taylor deslumbrante como  Cleópatra. Tudo                  por acaso. A preponderância do aleatório sobre o  determinado pode                  dar a sensação de desesperança, de que somos impotentes                  diante de todas as coisas. Talvez nisso residam a beleza  e a complexidade da                  vida, mas o fato é que o cérebro está mais interessado                  em ordem do que em belezas complexas. Por isso, quando  não vê significado                  nas coisas naturais, ele salta para o sobrenatural.  "Nascemos com o cérebro                  desenhado para encontrar sentido no mundo", diz o  psicólogo Bruce                  Hood, da Universidade de Bristol, na Inglaterra, autor  de Supersense: Why                    We Believe in the Unbelievable (Supersentido: Por  que Acreditamos no Inacreditável).                "Esse desenho às vezes nos leva a acreditar em coisas que  vão                  além de qualquer explicação natural."
O achado de Hood foi  descobrir que as crenças talvez não                  sejam fruto nem da religião nem da cultura, mas uma  expressão                  de como o cérebro humano trabalha. É o que ele chama de  "supersentido".                É o supersentido que nos leva a bater na madeira, dar  valor afetivo a                  um objeto ou conversar com Deus. A religião seria uma  criação                  mental através da qual o cérebro atende a sua  necessidade por                  sentido. O apocalipse, nesse caso, é uma saída  brilhantemente                  engenhosa. Explica duas questões que atormentam a  humanidade desde sempre:                  o significado da vida e a inevitabilidade da morte.  Somos a única espécie                  com consciência da própria morte e, no entanto, não  sabemos                  o significado da vida. Afinal, por que estamos aqui? A  pergunta, em si, revela                  nossa busca por sentido, devido à nossa dificuldade de  conviver com a                  possibilidade de que, talvez, não estejamos aqui por  alguma razão                  especial. O apocalipse é uma resposta. Está descrito nos  seus                  mínimos e horripilantes detalhes no Livro do Apocalipse,  escrito pelo                  evangelista João, por volta do ano 90 da era cristã,  quando estava                  preso, perseguido pelo Império Romano.
O começo do fim do mundo, diz João, será                anunciado por sinais tenebrosos: um céu negro, uma lua cor  de sangue,                  estrelas desabando sobre a Terra e uma sucessão de  desastres varrendo                  o planeta na forma de terremotos, inundações, incêndios,                   epidemias. O Anticristo então dominará a Terra por sete  anos,                  ao fim dos quais Jesus Cristo descerá dos céus com um  exército                  de santos e mártires – e vencerá Satã, a besta. Depois                  de 1 000 anos acorrentado, Satã conseguirá se libertar e                   forçará Jesus Cristo a travar uma segunda batalha, a  terrível                  batalha do Armagedom. Derrotado Satã, todos nós, vivos e  mortos,                  nos sentaremos no banco dos réus do tribunal divino. Os  bons irão                  para o paraíso celestial. Os maus arderão no fogo  eterno. É                uma narrativa tão magicamente escatológica que Thomas  Jefferson,                  o terceiro presidente dos Estados Unidos, a chamou de  "delírio de                  um maníaco". Bernard Shaw, o grande teatrólogo irlandês,                   disse que era o "inventário das visões de um drogado".                  Delírio ou visões, o Livro do Apocalipse explica tudo. O  professor                  Ralph Piedmont, do Loyola College, em Maryland,  especialista em psicologia da                  religião, afirma: "O Apocalipse de João explica a morte,                   ao informar que vamos ressuscitar, e dá sentido à vida,  ao dizer                  que é uma provação".
Subsidiariamente, o  apocalipse atende a outra necessidade humana,                  a de acreditar num mundo regido por uma ordem moral. Os  historiadores atribuem                  o surgimento da visão apocalíptica ao persa Zoroastro,  ou Zaratustra,                  que viveu uns 1 000, talvez 1 500 anos antes de Cristo.  Ele foi                  o primeiro a falar de uma batalha cósmica entre o bem e o  mal, mais tarde                  aproveitada pelos profetas Ezequiel, Daniel e,  principalmente, João.                "Num mundo em que, com frequência, os bons sofrem e os  maus prosperam,                  a promessa de um julgamento moral é um consolo  profundo", diz Michael                  Barkun, professor de ciência política da Universidade de  Syracuse,                  que estuda a relação entre violência e religião.                  Eis por que o fim do mundo aterroriza mas também pode  nos consolar. Nem                  sempre o apocalipse vem numa embalagem religiosa. A  profecia de 2012 começou                  com base em eventos astronômicos e calendários antigos.  Só                depois recebeu a adesão de seitas espiritualistas e  cristãs, mas                  originalmente 2012 é, digamos, um fim do mundo pagão. Se  não                é um fim com prêmio aos bons e punição aos maus,                  então por que acreditamos em profecias que nunca dão  certo?
A explicação começou a  surgir nos anos 50,                  quando o brilhante psicólogo americano Leon Festinger  (1919-1989) resolveu                  testar uma hipótese revolucionária: a de que, diante de  uma profecia                  fracassada, os fiéis não desistem de sua crença, mas, ao                   contrário, se aferram ainda mais a ela. Festinger e seus  colegas se infiltraram                  numa seita do fim do mundo e descobriram exatamente o  que imaginavam. O grupo                  era formado por quinze pessoas e liderado por uma dona  de casa de Michigan,                  Marion Keech, que fora informada por extraterrestres de  que o mundo acabaria                  com uma inundação no dia 21 de dezembro – olha a data aí                 de novo – de 1954. Antes da catástrofe final, Marion e  seguidores                  seriam resgatados pela nave-mãe e levados para um lugar  seguro. Na data                  e hora marcadas, eles se reuniram para esperar o  resgate, e não apareceu                  nave nenhuma. Passou uma hora, e nada. Duas horas, e  nada. Eles estavam tensos                  e preocupados, alguns começando a dar sinais de  descrença naquilo                  tudo, até que, quase cinco horas depois, Marion foi  novamente contactada                  pelos extraterrestres com uma novidade redentora: o  grupo ali reunido, com o                  poder de sua crença, espalhara tanta luz que Deus  cancelara a destruição                  do mundo. Os membros reagiram com entusiasmo. Haviam  encontrado um meio de acreditar                  que a profecia, afinal, estava correta.
O caso foi contado no livro When  Prophecy Fails (Quando                  a Profecia Falha) e se tornou um dos fundamentos do que  veio a se chamar teoria                  da dissonância cognitiva. É a inclinação que temos                  para reduzir o profundo desconforto provocado por duas  informações                  conflitantes – no caso, a crença de que o mundo vai  acabar e a evidência                  incontornável de que o mundo não acabou. Há exemplos  mais                  rotineiros, como o sujeito que sabe que o cigarro pode  matar e, no entanto,                  fuma dois maços por dia. Tem-se uma "dissonância  cognitiva",                  que precisa ser resolvida: ou o sujeito para de fumar ou  racionaliza que o cigarro,                  no fundo, acalma, emagrece, seja o que for. Meio século  depois, a tese                  de Festinger será ainda válida para explicar a crença  inabalável                  em profecias finalistas? "É, ainda, a melhor explicação                  psicológica", diz Daniel Gilbert, da Universidade  Harvard, autor                  de um trabalho pioneiro sobre como enxergamos o futuro –  com lupa, diz                  ele, sempre dando a sucessos ou fracassos importância  muito maior do que                  efetivamente terão quando (e se) acontecerem.
                As profecias do apocalipse  são um desastre como previsão                  do futuro, mas excelentes como alegorias do presente. A  coleção                  de afrescos e pinturas clássicas que retratam o Juízo  Final, como                  a obra-prima de Michelangelo na Capela Sistina, reflete o  temor do tribunal                  divino e o domínio da Igreja Católica de então. Depois                  da II Guerra, os filmes de Hollywood, grandes difusores  da catástrofe                  final, passaram a enfocar o fim do mundo como resultado  de uma guerra nuclear                  ou de um monstro deformado pela radioatividade. Estavam  narrando as aflições                  dos americanos com a bomba de Hiroshima e Nagasaki e a  chegada da corrida armamentista                  com a União Soviética. 
É o momento em que o apocalipse                  começa a ter duas fontes – a religião e a ciência.                  Nos anos 60, com as profundas transformações varrendo os  EUA,                  da Guerra do Vietnã à revolução sexual, do advento                  do computador ao movimento dos direitos civis, dos  Beatles a Woodstock, o apocalipse                  mudou de lugar. "O livro da revelação deixou o gueto  cristão                  e entrou no coração da política americana e da cultura                  popular", escreve Jonathan Kirsch em A History of the  End of the World (Uma História do Fim do Mundo), um ótimo  inventário do                  apocalipse.Desde os anos 50, cada década tem pelo  menos uma dúzia                  de filmes apocalípticos dignos de nota, de Godzilla  a Apocalypto, de O Planeta dos Macacos a Matrix,  de O Bebê de Rosemary a Presságio. Eles sempre narram algo  do seu tempo. 
Há estudiosos                  que acreditam que mesmo o Livro do Apocalipse teria sido  uma resposta às                  perseguições que os cristãos sofriam no Império                  Romano – e a besta, o Anticristo, o Satã seriam Nero, o  imperador                  que tocou fogo em Roma. Como os apocalipses tomam a  forma de sua época,                  o Anticristo se atualiza. Na II Guerra, era Adolf  Hitler. Hoje, é Osama                  bin Laden. Isso é claro nos EUA, cuja condição de  potência                  acaba por difundir suas neuroses e seus achados para o  mundo todo. O apocalipse                  na cultura? Antes, eram os hippies com sua percepção  extrassensorial                  e drogas alucinógenas. Depois, no ano 2000, foi o  tecnoapocalipse, na                  forma do bug do milênio. O apocalipse na política?  Antes, era o                  Exército Vermelho. Agora, é o terrorismo islâmico. Como                  disse Eric Hoffer (1902-1983), que passou a vida como  estivador e filósofo:                "Movimentos de massa podem surgir e se espalhar sem a  crença num                  deus, mas nunca sem a crença num diabo". 
 Nenhuma das hipóteses do  fim do mundo em 2012 mencionadas                  nesta reportagem faz sentido. O planeta Nibiru nem  existe. A civilização                  maia, cujo auge se deu entre 300 e 900 da era cristã,  tinha três                  calendários: o divino, o civil e o de longa contagem,  que termina em                  2012. "Mas os maias nunca afirmaram que isso era o fim  do mundo",                  diz David Stuart, da Universidade do Texas, considerado  um dos maiores especialistas                  em epigrafia maia. Uma mudança no eixo de rotação da  Terra                é impossível. "Nunca aconteceu e nunca acontecerá",                  garante David Morrison, cientista da Nasa, agência  espacial americana.                  Reversão do campo magnético da Terra? Acontece de vez em  quando,                  de 400 000 em 400 000 anos, e não causa nenhum mal à                vida na Terra. Tempestade solar? Também acontece e em nada  nos afeta.                  Derradeiro alinhamento planetário em que a Terra ficará  no centro                  da galáxia? Não haverá nenhum alinhamento planetário                  em 2012, e, bem, quem souber onde fica "o centro" da  nossa galáxia                  ganha uma viagem interplanetária. 
Mas Patrick Geryl, que  se prepara para                  o fim do mundo, está certo de que tudo termina em 2012. E  se não                  terminar? Geryl pensa, olha para o alto e responde: "Não  existe                  essa hipótese". Ele e seu grupo encontrarão uma boa  explicação                  quando o dia raiar em 22 de dezembro de 2012. Afinal, é  preciso se preparar                  para um novo fim do mundo.
Os dez dias que sumiram
O calendário maia,  dizem os apocalípticos, prevê                      o fim do mundo para o dia 21 de dezembro de 2012.  Calendários, no entanto,                        são excelentes instrumentos para orientar sobre o  compromisso da próxima                        quarta-feira, mas são um embuste para prever o  futuro. As diversas civilizações                      – não só os maias, mas os egípcios, os chineses –                      criaram os próprios calendários, uns com base no  Sol, outros com                        base na Lua, uns mais longos, outros mais curtos,  mas todos sempre foram expressão                        da inclinação humana de atribuir ordem ao caos.  Com o calendário,                        criamos a sensação de ordenar os dias, os meses e  os anos num                        sistema cronológico racional e matematicamente  preciso. Só que                        a natureza não é assim. Num delicioso livro  lançado às                        vésperas do ano 2000, O Milênio em Questão, no  qual se baseia                        este texto, o grande paleontólogo americano  Stephen Jay Gould (1941-2002)                        escreveu: "A natureza, aparentemente, pode fazer  um esplêndido hexágono,                        mas não um ano com um belo número par de dias ou  rotações                        lunares". E, com o humor que lhe era peculiar,  acrescentou: "A natureza                        se recusa teimosamente a trabalhar com relações  numéricas                        simples justamente naquilo em que sua regularidade  seria mais útil para                        nós". 
Ou seja: os ciclos  naturais dos dias, meses e anos não                        são redondos, pares perfeitos. São frações,  números                        quebrados, e aí começa um problemão. Um ano –  tempo                        que a Terra leva para dar uma volta completa em  torno do Sol – não                        dura 365 dias. Dura 365 dias e algumas horas. Para  facilitar a conta, arbitramos                        que um ano dura 365 dias e seis horas, ou um  quarto de dia. Mas, como não                        podemos ter um quarto de dia, a cada quatro anos  temos o ano bissexto, com 366                        dias, o que recoloca nosso calendário em sintonia  com o ano solar. Porém,                        a natureza, na sua magistral indiferença para com  nossos números                        inteiros, na realidade não faz um ano de 365 dias e  seis horas. São                        365 dias e 5 horas, 48 minutos e 45,97 segundos!  Isso quer dizer que o acréscimo                        do 366° dia cobre o descompasso ocorrido em cada  quatro anos, mas imprecisamente.                        Como o tal descompasso não era de exatas 24 horas –  era de 23 horas,                        15 minutos e 3,88 segundos –, o ajuste feito pelo  ano bissexto ainda nos                        deixa com um pequeno atraso em relação à natureza:  um atraso                        de 44 minutos e 56,12 segundos a cada quatro anos.  É pequeno, mas aumenta                        com o tempo. Em vinte anos, o atraso soma quase  quatro horas. É tolerável.                        Em 100 anos, passa de dezoito horas. Começa a  complicar. À medida                        que vai avançando, passa a embaralhar as estações  do ano,                        a época certa para plantar, para colher, para  pescar. Vira um, digamos,                        apocalipse.
Em 1582, o calendário  da época, que vinha desde                        os tempos do Império Romano, já acumulava um  atraso de dez dias                        em relação ao ano solar. Era demais, inadmissível.  O papa                        Gregório XIII convocou então uma comissão de  matemáticos                        para dar uma solução ao problema. Chegou-se a uma  saída                        formidável. Com seu poder incontrastável sobre o  destino da humanidade                        e do universo, o papa decretou o sumiço dos dez  dias. Simples assim.                        Riscou fora. A humanidade foi dormir em 4 de  outubro e acordou em 15 de outubro.                        O período de 5 a 14 de outubro de 1582 não  existiu, jogando algumas                        dúvidas para as calendas gregas. O que aconteceu  com quem fazia aniversário                        no período suprimido? E quem tinha conta para  pagar num dia que sumiu?                        Pagou juros? Queixou-se ao papa? Resolvida a  diferença de dez dias, a                        comissão achou outras soluções criativas. Para  evitar que                        o descompasso dos anos bissextos voltasse a se  alargar a longo prazo, estabeleceu                        que a cada século múltiplo de 100 – 1800, 1900,  2000, por                        exemplo – não haveria ano bissexto. Excelente. Mas  a retirada do                        366° dia seria provisoriamente excelente porque  criaria um desequilíbrio                        lá adiante. Então, inventou-se outra compensação:                        de quatro em quatro séculos, o ano bissexto volta.
Parece confuso, mas é  assim que funciona até hoje:                        de 100 em 100 anos, cai o ano bissexto; de 400 em  400, reinstala-se o ano bissexto.                        Com esses avanços e recuos, somas e diminuições,  nosso                        calendário consegue dançar num movimento parecido  com o balé                      irregular dos ciclos naturais. (Não é idêntico  porque o                        calendário gregoriano ainda se distancia do ano  solar em 25,96 segundos.                      É irrisório, leva mais ou menos 2 800 anos para  chegar a                        um dia inteiro, mas perfeito é que não é.) Diante  de tantos                        ajustes, a velha e boa folhinha de parede é um  medidor preciso para o                        compromisso de quarta-feira, mas, com suas  imprecisões em relação                        aos eventos astronômicos, não é exatamente boa  para embasar                        previsões futuras.
Para fugir das  confusões do ano solar, há quem prefira                        as previsões com base no mês lunar – tempo que a  Lua leva                        para dar uma volta completa em torno da Terra. Na  verdade, não resolve                        nada. Apenas se troca de problema. Para facilitar  nossos cálculos, arbitramos                        que a Lua leva 29 dias e meio para dar a volta na  Terra. Mas, na realidade,                        a Lua leva, precisamente, 29,53 dias – de novo, a  caprichosa fração                        da natureza. Assim, se um ano tem doze meses e  cada mês corresponde a                        uma lunação, a conclusão matemática é que                        um ano tem doze lunações. Era para ser, mas não é.                         As doze lunações, indiferentes à ordem humana, não                         levam 365 dias para se realizar, mas somente 354  dias, uma debochada diferença                        de onze dias em relação ao ano solar...! Por isso,  é preciso                        que... Bem, diga-se apenas que é preciso recorrer à  inventividade                        humana para conciliar o calendário e o universo.  Fica claro que qualquer                        profecia anunciada com base em calendários,  solares ou lunares, maias                        ou gregorianos, é mais ou menos uma brincadeira,  pois nossas fórmulas                        numéricas, tão regulares e ordenadas, não traduzem  a exata                        natureza dos eventos astronômicos, tão caóticos e  irregulares.                    É quase como querer tirar a raiz quadrada do mar.