Assim que tornou-se pública a identidade do novo Papa, rótulos surgiram
atrelados ao nome de Jorge Mario Bergoglio. “Flexível”, para quem guarda
na memória uma imagem de 2001, quando ele lavou e beijou os pés de 12
pacientes com Aids durante visita a um hospital. “Conservador moderado”,
na definição de alas da Igreja que veem no argentino alguém que
conseguiu conter o avanço de correntes liberais entre os jesuítas, ao
mesmo tempo em que representa as mazelas do mundo em desenvolvimento.
“Ultraconservador” é a aposta dos argentinos que lembram do então
arcebispo de Buenos Aires combativo, firmemente contrário à adoção do
casamento gay no país em 2010. E “incógnita”, para quem recorda o ataque
desferido em setembro passado contra padres que se recusaram a batizar
crianças nascidas fora do casamento na Argentina. O adjetivo que melhor
parece definir o ex-arcebispo de Buenos Aires, porém, é outro — humilde.
Aos 76 anos, o primeiro Pontífice jesuíta e latino-americano é
conhecido como um intelectual politizado, que desprezou o conforto da
moradia oficial da arquidiocese para viver num quartinho simples no
segundo andar de um prédio anexo à Catedral de Buenos Aires. Abriu mão
de carros oficiais e viajava de ônibus e metrô para realizar seu
trabalho pastoral, sendo fiel aos votos de pobreza de São Francisco de
Assis, a quem homenageou quando aceitou ontem tornar-se o Papa
Francisco. E quem o conhece já questiona como alguém tão modesto vai se
adequar à suntuosidade do Vaticano.
Biografia bem antes de chegar à Santa Sé
A
retrospectiva da vida de Papa Francisco vai mesmo ao encontro da
primeira impressão deixada ontem. No primeiro discurso diante de
milhares de fiéis que se aglomeraram na Praça de São Pedro, ele exalou
tranquilidade e deixou escapar sorrisos. Passou a imagem de um Pontífice
bem-humorado e até brincalhão, que não titubeou ao dizer que a Igreja
fora buscá-lo “quase no fim do mundo”. Humano.
Os jornalistas
Sergio Rubín, um argentino especializado em religião, e a italiana
Francesca Ambrogetti, radicada em Roma, concordam. Desde 2005, a dupla
percebeu a personalidade intrigante do cardeal que quase foi eleito Papa
e escreveu sua biografia, “O Jesuíta”, lançada em 2010. Baseado numa
série de encontros com o então cardeal, o livro relata um Bergoglio
quase caricato para um argentino: fã de tango e torcedor apaixonado do
San Lorenzo de Almagro, um dos cinco maiores clubes de futebol local,
fundado, curiosamente, por um padre salesiano, Lorenzo Massa.
A
dupla garante, ainda, que Papa Francisco é bem-humorado, do tipo que
conta piadas sobre religião e até sobre os padres. E também gosta de
cozinhar a própria comida, tarefa que aprendeu ainda menino, com a mãe.
— Bem, nunca matei ninguém — disse ele, certa vez, em tom de galhofa, sobre o resultado de suas experiências culinárias.
Colegas
contam que, nas reuniões do Vaticano, o então cardeal gostava de se
sentar nas últimas fileiras. Tentava a todo custo se manter discreto,
mas, desde 2005, isso ficou difícil. E a analogia ao futebol é adequada:
no conclave que elegeu o cardeal Joseph Ratzinger, fora justamente o
jesuíta argentino seu principal desafiante. Segundo um diário anônimo do
conclave, que vazou à imprensa em setembro daquele ano, Bergoglio teria
recebido 40 votos na terceira votação. Mas acabou desistindo da
disputa, em parte, devido a uma denúncia que manchou sua reputação três
dias antes da abertura do conclave. Um advogado de direitos humanos
entrara com uma ação na Justiça acusando o arcebispo de Buenos Aires de
cumplicidade no sequestro de dois padres jesuítas em 1976, sob a
ditadura militar argentina. Segundo o vaticanista John Allen Jr., ele
também foi vítima de uma campanha negativa por e-mail, aparentemente
orquestrada por colegas da Companhia de Jesus. Ele negou veementemente
todas as acusações.
Até o fato de ter renunciado àquela disputa
com Ratzinger parece ter-lhe rendido pontos na Cúria Romana — ainda que
não ele seja um homem de carreira nos círculos administrativos da
Igreja. Numa entrevista ao diário “La Stampa”, no ano passado, deu
sinais de estar ciente dos problemas da contestada Cúria. Mas apontou-os
com sutileza.
— O carreirismo e a busca de uma promoção vêm sob a
categoria do mundanismo espiritual. A Cúria Romana tem seus pontos
negativos, mas eu acho que muita ênfase é colocada nesses aspectos
negativos, e não na santidade dos numerosos sacerdotes e leigos que
trabalham nela — declarou.
Esse tom conciliador parece se refletir
na própria escolha de Bergoglio para o Trono de Pedro. Nascido em
Buenos Aires, em 17 de dezembro de 1936, ele é filho de um ferroviário
italiano que emigrou de Turim para a Argentina, onde teve cinco filhos —
uma eleição certeira, capaz de apaziguar a majoritária ala italiana da
Cúria ao mesmo tempo que acena para o mundo em desenvolvimento.
Sem pulmão, mas com fôlego para a política
O
jovem Bergoglio sonhava em ser químico e chegou a completar um curso
técnico. Mas, aos 21 anos, optou pelo sacerdócio e, em 1958, entrou na
Companhia de Jesus — dez anos depois de perder um dos pulmões devido a
uma infecção respiratória. Foi ordenado sacerdote em 1969 e, durante a
ditadura argentina, ascendeu ao comando provincial dos jesuítas.
O
novo Pontífice fala espanhol, italiano e alemão. Construiu toda sua
carreira eclesiástica na Argentina — exceto por dois breves períodos
vividos no Chile e na Alemanha, onde estudou. Amante da poesia e dos
livros, ele revelou a seus biógrafos ser um leitor voraz, apreciador de
Fiódor Dostoiévski e Jorge Luis Borges, “um sábio, um agnóstico que
todas as noites rezava o Pai-Nosso porque havia prometido à mãe”. Até a
revista do Partido Comuninista da Argentina era lida com atenção, embora
o Papa tenha ressaltado:
— Nunca fui comunista.
Pelo
contrário. Ele chegou até a combater os partidários da Teologia da
Libertação e os lampejos marxistas nos anos 70, pois fazia questão de se
manter fiel ao Evangelho. A batina, porém, não ofuscou sua vocação para
a política. Conhecido pelo enfoque no trabalho pastoral e na obra
social, Bergoglio fez das críticas a pobreza e corrupção suas marcas
registradas.
Teve, desde 2003, embates duros com o governo
kirchnerista. Em suas homilias, atacava não só a situação social da
Argentina como o “clima de confrontação política” do país. E depois de
irritar o ex-presidente Néstor Kirchner em várias ocasiões, a batalha se
estendeu à atual presidente e viúva, Cristina Kirchner, que não raro o
acusa de ingerência indevida nos assuntos de Estado.
Os dois,
aliás, parecem travar uma guerra particular. A militância de Bergoglio
não conseguiu impedir a Argentina de tornar-se o primeiro país
latino-americano a autorizar o casamento gay, em 2010. Ou barrar
determinações do governo de Cristina, autorizando, por exemplo, a
distribuição de anticoncepcionais gratuitos. Certa vez, o então
arcebispo disse que as adoções de crianças por casais homossexuais eram
uma discriminação contra os menores. A presidente reagiu, classificando
as declarações como “da época medieval e da Inquisição”.
Bergoglio
cometeu algumas faltas, mas foi jogador de peso na arena nacional de
seu país. Agora, porém, será testado como numa Copa do Mundo da
religião. E com 1,2 bilhão de católicos no planeta, torcida não faltará
para que o Papa da Argentina siga a tradição dos gramados: ataque os
adversários, faça gols e leve ao Vaticano a inspiração — e a graça — do
futebol azul e branco.
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quinta-feira, 14 de março de 2013
Papa Francisco:Perfil de homem modesto esconde uma voz sempre disposta a denunciar a pobreza, a corrupção e a desigualdade social
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