«Como amar a Deus sobre todas as coisas?
Sinto muito maior comoção ao pensar em meus pais e amigos do que ao pensar em Deus. Por isto também me parece que não tenho contrição dos pecados; nada sinto ao recordar-me deles».
1. A questão se resolve
sem grande dificuldade, desde que se leve em conta a distinção entre
amor afetivo e amor apreciativo ou efetivo.
a) O amor afetivo é a atração que
experimentamos frente a determinada pessoa pelo fato de a estarmos
percebendo mediante os sentidos (os olhos, os ouvidos…). Somos então
«impressionados» de maneira sensível; em consequência, a nossa natureza
corpórea vibra espontaneamente — o que se manifesta mediante sorriso,
estremecimento, lágrimas, pranto, rubor, palidez, etc. Tais reações
podem escapar ao controle da vontade; embora muito abalem o indivíduo,
são, por vezes, algo de infra-humano. Não são motivadas pela dignidade
da pessoa ou do objeto que impressionam (pode mesmo acontecer que pessoa
pouco digna provoque grande comoção sensível).
É natural que as pessoas com quem mais
intimamente convivemos, como genitores, familiares e amigos, despertem
em nossa sensibilidade mais vivas reações ou emoções. Tais emoções podem
ser moralmente boas e sadias, desde que tenham motivo reto (assim a
emoção que experimentamos ao pensar em pai e mãe é moralmente boa);
contudo essas emoções sensíveis não são critério de verdadeiro amor,
pois ficam abaixo do plano em que se localiza o amor propriamente dito
(plano da inteligência e da vontade). A emoção sensível é, na melhor das
hipóteses, algo que acompanha o genuíno amor, mas não o caracteriza.
b) O amor apreciativo é a atração que se
deriva da apreciação ou da consideração inteligente do valor que nos é
proposto. Quem, por exemplo, reflete sobre o que Deus é, verifica que é o
Sumo Valor; se, em consequência, concebe o propósito de Lhe aderir
incondicionalmente, está amando a Deus com amor apreciativo,… e amor
apreciativo que, no caso, é sumo ou está acima de todas as coisas.
Tal amor pode não provocar reação alguma
em nossa natureza sensível, pois ele não depende de contato sensitivo
(dos olhos, dos ouvidos…), e, sim, de uma reflexão da inteligência. É,
por isto, muito digno e muito mais característico da nobreza humana do
que o amor afetivo.
Leia também: Amar a Deus pelo que Ele é
Por conseguinte, para que alguém cumpra o
preceito de amar a Deus sobre todas as coisas, não se requer que vibre
sensivelmente ao pensar em Deus, mas que esteja firmemente disposto a
tudo sacrificar (até mesmo o deleite de conviver com os parentes e
amigos), a fim de não perder a união com o Senhor, ou seja, a fim de não
pecar. Para averiguar se possui tal amor, o cristão examinará o zelo
que emprega para evitar as ocasiões de pecado, combater as tentações e
progredir na vida espiritual. É, pois, pela prática cotidiana ou pelos
efeitos (não pelos sentimentos emotivos) que se verifica a existência do
amor apreciativo.
2. O mesmo se diga com
referência à contrição dos pecados. A genuína contrição não implica
necessariamente emoção sensível e lágrimas (pode haver tais
concomitantes, não raro são graças especiais de Deus); mas consiste
essencialmente em repúdio do pecado, repúdio decorrente da consideração
inteligente e serena do que é uma ofensa a Deus. Por efeito desse
repúdio, o penitente deve conceber o firme propósito de fazer tudo para
não mais pecar, ainda que sofra, em consequência, a própria morte.
Note-se que a contrição e o propósito são
válidos mesmo que a pessoa não tenha certeza de não recair em culpa
apesar dos seus sinceros esforços. Na verdade, todo indivíduo está
sujeito a ser surpreendido e suplantado pela miséria de sua natureza. O
que o Senhor Deus requer do penitente, é a disposição legal de empregar
todos os meios que, humanamente falando, lhe parecerem oportunos para
não ser vencido pelo pecado.
Vê-se assim que pode muito bem haver
genuína contrição sem emoções sensíveis (a expressão «dor pelos pecados»
não significa «abalo emotivo ou sensível»); a contrição tem sua sede na
inteligência e na vontade, não na sensibilidade da natureza humana.
3. O amor apreciativo que devotamos a Deus admite três graus:
a) o primeiro consiste em aderir ao
Senhor de modo a não querer perder a união com Ele por causa de criatura
alguma ou por causa de pecado mortal. Esta forma de amor caracteriza a
via purgativa ou os inícios da vida espiritual, em que a pessoa está
obrigada a lutar contra a concupiscência desregrada, a fim de não ser
arrastada a pecados graves.
b) O segundo grau de amor consiste em que
o cristão não queira não somente perder, mas nem mesmo diminuir a união
com Deus — o que se daria pelo pecado leve ou venial. Esta modalidade
de amor caracteriza a via iluminativa, na qual a pessoa procura com
diligência fortalecer as virtudes inicialmente adquiridas na fase
anterior.
c) O terceiro grau de amor leva o cristão
a procurar evitar até mesmo as imperfeições voluntárias, a fim de não
sofrer o mínimo detrimento ou entrave na união com Deus.
Consequentemente, a pessoa, em qualquer de seus atos, escolhe o que
julga mais agradável ao Senhor. Tal é a característica da via unitiva,
em que a intimidade com Deus se vai desenvolvendo sem limite.
Fonte: Dom Estêvão Bettencourt (O.S.B.)
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