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sexta-feira, 5 de março de 2010

Lugar de religião é na escola?

Um acordo assinado entre o Brasil e a Santa Sé esquenta o debate sobre o ensino religioso nas escolas públicas do país

Historicamente, Igreja e Estado nunca conseguiram uma parceria neutra. Com a evolução das sociedades, o Estado foi se desvinculando da influência da Igreja, tornando-se laico, mais democrático e autônomo.

Mas o Brasil parece estar recuando até o século XIX, segundo alguns críticos ao ensino religioso obrigatório nas escolas públicas brasileiras. Roseli Fischmann é uma delas. Professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Metodista, de São Bernardo do Campo, Roseli é autora do livro Ensino Religioso em Escolas Públicas: Impactos sobre o Estado Laico. Para ela, é preciso deixar bem clara a ideia de que, se a escola é pública, ela precisa ser laica. Ao contrário das escolas religiosas particulares, nas quais os pais matriculam seus filhos por opção, por quererem seguir determinada confissão religiosa, a escola pública pertence ao Estado, ou seja, ela é de todos. “O acordo que o Brasil assinou com a Santa Sé torna o ensino religioso católico obrigatório, bem como o de outras confissões. Para começar, como a Igreja católica pode decidir sobre as outras religiões? Isso não é republicano e nem democrático”, explica a professora, que esclarece ser uma pessoa de fé que defende o Estado laico com argumentos acadêmicos.

Estado laico no papel

Todos os que transitam pelas escolas públicas brasileiras costumam se deparar com símbolos religiosos, geralmente católicos – como crucifixos e imagens da Nossa Senhora -, espalhados pelas salas e dependências. Parece não ser nada significativo, já que a maioria da população brasileira é católica, mas a professora Roseli alerta para o perigo de se privilegiar uma religião em detrimento de outras: “Quando a escola exibe esses símbolos, pode significar que aquela religião é mais importante do que as outras. Além disso, a Constituição, que é o documento mais importante do país, explicita que o ensino religioso é obrigatório, mas facultativo ao aluno. Na prática, isso quer dizer que, em vez de os pais autorizarem ou não que seus filhos assistam a aulas de ensino religioso impostas pela escola, os pais é que deveriam solicitar as aulas à escola para então, mais tarde, o aluno optar por assisti-las ou não”.

Um estudo apresentado em 2008 pela ong Ação Educativa revelou que em todos os estados brasileiros já existem leis sobre o tema. E muitas contêm várias inconstitucionalidades, como ministrar o ensino religioso no ensino médio. As leis se agrupam em três grandes modelos: o modelo interconfessional – que procura reunir um grupo de religiões – é o mais disseminado no país. O problema é que geralmente as aulas seguem os preceitos de religiões cristãs – católica e protestante. O segundo modelo leva em conta as religiões da clientela das escolas e os professores são indicados pelas organizações religiosas. É um modelo administrativamente impossível de ser implantado, pela diversidade de religiões existentes entre a população. E o terceiro modelo defende o ensino da religião como um fenômeno social e histórico. O problema desse modelo é que exige professores muito bem preparados para ministrar as aulas, que não sejam influenciados por suas próprias crenças e saibam enfrentar resistências e incompreensões por parte dos alunos e de suas famílias.

Ética não é doutrina religiosa

Para a professora Roseli, além de todas as dificuldades e suscetibilidades inerentes ao ensino de uma ou diversas religiões, existe o perigo de a doutrina se sobrepor ao processo educativo. “O desenvolvimento da autonomia é o grande objetivo da educação. A pessoa precisa aprender a refletir sobre os fatos, respeitar como o outro pensa, avaliando suas opções e fazendo suas escolhas. A autonomia é ditada pela vida em sociedade. Por isso, é perigoso se um professor recorre a explicações simplificadas como ‘é assim porque Deus quis’. A criança acaba não aprendendo a pensar por si mesma”, afirma a estudiosa, que já há alguns anos vem participando de debates e escrevendo diversos artigos sobre o tema, como o publicado na Revista ComCiência, produzida pelo LabJor – Laboratório de Jornalismo da Unicamp.

Outro perigo é o proselitismo. Mesmo sem querer, um professor pode acabar influenciando a escolha religiosa de um aluno, o que é proibido por lei. “A liberdade de crença é constitucional. A regra da maioria no jogo democrático não pode passar por cima das minorias. Existe um texto constitucional e ele não libera o Estado para ministrar o ensino religioso que melhor lhe convier”.

Um dos mais fortes argumentos de quem defende o ensino religioso nas escolas é que ele pode ajudar a combater a violência e a crise de valores. Outro equívoco perigoso, segundo a professora. “A ética não pode depender de uma religião. Nem se pode sempre evocar um deus para se combater a violência. A escola precisa lidar com esses problemas baseada nos valores humanos. Pois somos todos seres humanos, e precisamos buscar o respeito mútuo como humanos. Se precisarmos evocar uma figura divina para alcançar isso, essa busca se destrói, pois será sempre intermediada por uma divindade. E se uma criança tiver um Deus diferente do meu? E se uma outra não acreditar em nenhum Deus, como fica?”, questiona ela, que é também perita da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) para a Coalizão de Cidades contra o Racismo e a Discriminação.

Roseli encerra defendendo a liberdade de consciência: “Ela é a mãe de todas as outras liberdades. As pessoas devem escolher sua religião de forma livre e autônoma, assim como escolhem suas carreiras e seus parceiros. O direito à liberdade de consciência, de crença e de culto é um tripé universal e fundamental.”

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