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sábado, 7 de março de 2009

Aborto. Saiba mais sobre esta prática criminosa e covarde

A realidade dos consultórios

Enquanto as questões éticas, religiosas e científicas ficam sem resposta, mais médicos brasileiros optam por ajudar suas pacientes decididas a interromper uma gravidez indesejada

Em um mundo ideal, o aumento da eficiência, a diminuição do custo e a facilidade de acesso aos métodos anticoncepcionais femininos e masculinos poderiam ter reduzido o aborto no Brasil a sua dimensão puramente médica. Ele seria praticado apenas para salvar a vida da mãe ou na circunstância de o feto que ela carrega no útero ter sido gerado por estupro ou ser inviável, por um defeito grave de formação. Mas não existe o mundo ideal. O aborto continua sendo um dilema social, humano, jurídico e um risco para a saúde de quase 1 milhão de mulheres brasileiras todos os anos. Essa questão, sem solução unânime no campo religioso (quando o feto passa a ter alma?) e no científico (quando a vida começa?), vem sendo encarada no dia-a-dia dos consultórios.

Tem crescido o número de médicos que, diante da irredutibilidade das pacientes em abortar, consideram seu dever profissional ajudá-las a enfrentar da melhor maneira possível as consequências da decisão. Essa atitude deriva da filosofia da redução de danos já adotada antes em alguns países para proteger a vida de usuários de drogas pesadas que não conseguem se livrar do vício. Diz o obstetra Osmar Ribeiro Colás, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp): "Não posso interromper uma gestação, mas tenho o dever ético de explicar a minha paciente quais são os métodos abortivos e, depois, se necessário, acudi-la".

O Brasil tem cerca de 18.000 ginecologistas. São pouco confiáveis as estatísticas de quantos se tornaram adeptos da filosofia de redução de danos para pacientes dispostas a desafiar a lei brasileira e se submeter a um aborto. O certo é que há vinte anos era raro achar um médico que discutisse essa questão e impossível encontrar outro que admitisse essa abordagem em sua prática médica. Hoje não só se debate livremente a questão do ponto de vista teórico como muitos, a exemplo do doutor Osmar Colás, admitem publicamente que não deixariam sem assistência uma paciente apenas porque ela decidiu abortar.

Sem muita precisão, os especialistas acreditam que chegue a 1 milhão o número de abortos realizados anualmente no Brasil de modo clandestino. As complicações decorrentes de abortos malfeitos, sem condições de higiene ou segurança, representam a quarta causa de morte materna, atingindo cerca de 200 mulheres. O cenário foi bem pior em um passado não muito distante. Na década de 80, os abortos clandestinos podem ter chegado a 4 milhões por ano. Vários fatores se combinaram para reduzir esse número. Os mais efetivos foram o aperfeiçoamento dos métodos anticoncepcionais e a disseminação no país de políticas de planejamento familiar. Desde 2002, o Ministério da Saúde distribui por sua rede capilar de atendimento a chamada "pílula do dia seguinte" – que contém uma substância capaz de impedir a fixação do óvulo no útero, provocando, consequentemente, sua expulsão pelo organismo feminino. Só a pílula do dia seguinte pode ter diminuído em 30% o número de abortos clandestinos no Brasil. A adoção da redução de danos por um número maior de médicos poderia derrubar ainda mais essa curva nos próximos anos.

Tal conduta prevê basicamente a adoção de duas medidas. O médico indica à sua paciente uma clínica clandestina onde ela pode fazer o aborto ou ele mesmo a orienta sobre como usar as pílulas abortivas. O medicamento mais utilizado para esse fim é o misoprostol, vendido sob o nome comercial de Cytotec. Lançado inicialmente na década de 80 para o tratamento de úlcera, descobriu-se logo que o Cytotec provoca contrações uterinas. Pelo risco que oferece às grávidas, no Brasil o misoprostol só pode ser usado por hospitais credenciados. Nem os médicos nem, menos ainda, suas pacientes podem, portanto, ter acesso legal à substância. "Há inúmeros sites na internet que vendem o remédio", diz o médico Colás. Um dos meios mais utilizados pelas brasileiras é a compra do misoprostol por intermédio da ONG holandesa Women on Web. Feito o pedido, a pílula é entregue em até três semanas pelo correio, por 70 euros. O site tem instruções em sete idiomas, incluindo o português. A maioria dos ginecologistas recomenda a internação da mulher ao primeiro sinal de sangramento. Ela dá entrada no pronto-socorro como se fosse vítima de um aborto espontâneo e a partir daí recebe atendimento. Quando a paciente não quer ser hospitalizada, os médicos sugerem que a mulher se submeta a um exame de ultrassom para se certificar de que todo o material embrionário foi expelido. Pela letra fria da lei brasileira, todo o procedimento narrado neste parágrafo pode ser descrito como criminoso. Ele seria visto como pecado ao juízo das convicções religiosas de muitas pessoas. O espantoso, nesse caso, é que, apesar das imposições legais e das restrições ético-religiosas, médicos e pacientes se sintam eticamente autorizados a discutir e a praticar procedimentos que levem ao aborto.


"Eu tinha apenas 17 anos, era recém-casada e começava a despontar como modelo, quando engravidei. Sonhava em ser mãe. Sempre fui contra a liberação do aborto, mas não podia levar aquela gravidez adiante. Eu era responsável pelo sustento de toda a minha família. Não sofri nenhum dano físico, mas carregarei para sempre as marcas psicológicas daquele aborto."
Luiza Brunet, 46 anos
Modelo e empresária

A fonoaudióloga mineira Larissa P., de 28 anos, e seu médico não tiveram muitas dúvidas quando colocados diante dessa questão. Larissa engravidou durante uma relação casual há dois anos. Como sua menstruação sempre foi muito irregular, só se deu conta da gravidez indesejada dois meses depois. Lembra ela: "Logo que descobri, procurei meu médico, e ele me sugeriu o Cytotec. Como sempre tive horror a hospital, preferi usar a pílula em casa". O médico explicou-lhe como seriam os sintomas, e ela controlou bem a ansiedade: "Foi tudo sem nenhum susto, exatamente como meu ginecologista havia descrito. Em seis horas, estava tudo resolvido. No dia seguinte fui ao consultório fazer um ultrassom para ter certeza de que estava tudo bem".

A filosofia da redução de danos para o aborto surgiu no início dos anos 2000, no Uruguai, país com leis tão rígidas quanto as do Brasil. A medida é incentivada pelo governo federal uruguaio. Diz o ginecologista Aníbal Faúndes, do Centro de Pesquisas em Saúde Reprodutiva, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp): "Antes da adoção do programa, o aborto ilegal era responsável por 35% das mortes maternas no Uruguai. Hoje, a taxa de mortalidade em decorrência de abortos malfeitos é de 20%". Há um mês, Campinas se transformou na primeira cidade brasileira a aprovar um projeto de redução de danos nos postos de saúde e hospitais municipais. Existe uma diferença crucial entre o programa uruguaio e o de Campinas. O médico brasileiro só está autorizado a orientar as pacientes em "processo de abortamento" ou depois de o aborto ter sido concluído. Existem basicamente dois motivos para a mudança de comportamento dos médicos em favor da redução de danos. O assunto saiu da sombra. O ministro da Saúde, José Temporão, já defendeu inúmeras vezes a necessidade de um debate público sobre a legalização da prática. No ano passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) deu início aos debates sobre a legalização da interrupção da gravidez de fetos anencéfalos e, pouco mais de um mês atrás, o presidente da Câmara, Arlindo Chinaglia, aprovou a criação da CPI do Aborto com o objetivo de investigar as práticas ilegais de interrupção da gravidez no Brasil. Os parlamentares não familiarizados com a realidade vão se espantar com a extensão do fenômeno e, se forem fundo na investigação, poderão deparar com algumas surpresas – entre elas, o fato de que muitas das clínicas são bem aparelhadas, com pessoal médico multidisciplinar e bem treinado. A administradora de empresas Denise Silva, de 43 anos, valeu-se dos serviços de uma dessas clínicas em 2002, quando, por descuido, engravidou do namorado (hoje, marido). Conta ela: "Foi tudo muito rápido e simples".

No Poder Judiciário, a questão começa aos poucos a ser discutida com mais desassombro. Nos últimos cinco anos, foram concedidos 3.000 alvarás judiciários para suspensão da gravidez em casos de má-formação fetal, especialmente anencefalia. É o dobro das liberações no mesmo período no início da década de 90 e representa 80% de todas as gestações de fetos anencéfalos. Em 26 de novembro de 2006, a operadora de telemarketing Adriane Caldeira, de 21 anos, foi uma das beneficiadas dos alvarás. Diz ela: "Não tive o menor problema em conseguir a autorização. O problema mesmo foi decidir abortar, pois era uma gravidez planejada – o nosso primeiro filho". Mas Adriane sabia que seu filho não teria nenhuma chance de sobrevivência e, apesar do sofrimento, interrompeu a gravidez. Por mais que a mulher esteja determinada e certa de sua decisão, optar por um aborto é sempre devastador. Ninguém que já tenha vivido a situação relata a experiência com a tranquilidade de quem acabou de dar um passeio no shopping. Não é simples nem nos casos em que a gravidez é resultado de uma agressão, como aconteceu com Luciane L., de 25 anos. Vítima de um estupro no ano passado, depois de vários meses de terapia ela aprendeu a lidar com a lembrança da violência, mas não consegue apagar da memória a confusão emocional que sentiu quando acordou da anestesia, depois do aborto.

Por mais que os médicos se rendam às demandas de suas pacientes e por mais que a legislação avance, a interrupção do processo de criação de uma vida humana nunca será de fácil compreensão intelectual ou emocionalmente simples. O médico Yaron Hameiry, ginecologista do Hospital Pérola Byington, em São Paulo, reflete bem essa situação: "Não posso ser juiz de uma vida que vai se formar. Seja qual for a circunstância em que o feto foi concebido, eu não posso ser juiz da vida alheia". Esse é um dilema que o ginecologista Jorge Andalaft, da Casa de Saúde da Mulher, da Unifesp, enfrentou em cada um dos 400 abortos legais que já fez, prática da qual é pioneiro no Brasil. Diz ele: "Todas as vezes, sem exceção, sinto uma pequena angústia de imaginar que estou tirando uma vida em potencial. Mas não cabe a mim julgar; a decisão foi da paciente, e ela deve ser respeitada".

A discussão de quando se inicia a vida é interminável. Mesmo que a ciência consiga um dia definir esse momento com precisão, os debates não cessarão. Parece óbvio e natural que, a partir do momento em que um óvulo é fecundado por um espermatozoide, uma vida em potencial começa a se desenvolver. Mas que potencial existe caso esse óvulo fertilizado não venha sequer a se fixar no útero? "Essa polêmica é infrutífera, pois o aborto sempre existirá, independentemente de qualquer conclusão científica, dogma religioso ou convicção ética. O aborto é acima de tudo uma questão de foro íntimo, uma decisão exclusivamente pessoal da mulher", teoriza Thomaz Gollop, ginecologista e professor de genética médica da Universidade de São Paulo.

Aos 46 anos, a empresária e modelo Luiza Brunet não consegue esquecer o aborto feito aos 17 anos. Era o início de sua carreira, de seu primeiro casamento, e ela não se sentia preparada para ter um filho. Luiza diz que é "contra o aborto". Seu caso ilustra a imensa complexidade da questão. Ser simples, acessível, seguro e legal não torna o aborto mais aceitável para as pessoas que o rejeitam. Ao contrário, torna-o ainda mais monstruoso ao juízo delas. Prova disso é o fato de que as discussões nos países onde a prática foi liberada nunca serenam – a cada dia elas são mais violentas. Coloque-se na pele de uma pessoa que acha o aborto, em qualquer fase da gestação e por qualquer motivo, igual a matar alguém, e uma visão do abismo que separa as convicções opostas nesse assunto começará a se abrir sob seus pés.

Fonte: Revista Veja

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